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Poesia sem pele e os seus celibatários





por Ronald Augusto[1]


O título do conjunto aponta para a ideia-imagem da poesia como carne viva; corpo tecido, construído, coisa mortal redimida pela linguagem. Ou ainda, como se a poesia fosse um discurso que, à força de desnudar tanto a fragilidade do universo (no sentido de ser algo que veio a se constituir contra todas as probabilidades), como o absurdo da condição humana, teria que se submeter necessariamente ou, antes, simultaneamente, a um autodesnudamento. Talvez por isso, Poesia sem pele apresente um significativo número de metapoemas ou de poemas que, ao mesmo tempo, pensam aspectos relativos às determinações da poesia, bem como investigam os dilemas da intuição estética. Ou seja, a poesia desnuda sua pureza aos seus celibatários, os leitores a serem comovidos. Comover envolve algumas dessas acepções: provocar ou sentir enternecimento; fazer perder ou perder a dureza de alma.
Lau Siqueira inscreve sua poesia (corro o risco de simplificar demais, mas vá lá) dentro de uma linhagem leminskiana, ou de um discurso poético que evoca traços hagiográficos com o pé na estrada, onde contam como pontos marcantes: a brevidade, um gosto pela tirada e/ou trocadilho (ex.: veloz a vida pássaro por nós), e uma nostalgia filosofal que ganha forma no uso vertiginoso da copulativa é. Cito: “o poeta/ é o que busca na palavra/ a dimensão do átomo”; “poema é face descoberta/ de tudo que pulsa”; “a solidão é esse barco/ que jamais naufraga/ ou sai da deriva”; “o alaúde é a espera do que/ não mais pertence ao oco/ das horas transgredidas”.
Os poemas de Poesia sem pele se encaminham para uma imagética meditativa latu sensu (o poeta como aquele que medita, mergulhado em profundos pensamentos que se corporificam em palavras: cogitabundo, bios theoretikos). A vida contemplativa afeita à plasticidade do poema, ou reimaginada na tensa calma desse objeto verbal de cunho radicalmente estético.
Uma coisa é olhar ou inspecionar a coisa (tal como João Cabral de Melo Neto), outra é olhar através da coisa na esperança de encontrar, depois dela, o algo mais que mitigue, ainda que de maneira efêmera, certa angústia existencial, a finitude. É nesse sentido que Lau Siqueira talvez seja utópico, como diz a prefaciadora.  Para o poeta “o pássaro é além do pássaro”; “lição necessária de voos e pousos” (grifo meu).  Lição: ensinamento-analogia, aviso ou sugestão que se obtém de experiência adquirida por meio de fato vivenciado; exemplo instrutivo; novo modelo de sensibilidade.
Mesmo o conceito, ou a metáfora da sedução como divisa estética, que o poeta invoca na epígrafe de Poesia sem pele, e cuja etimologia contém a acepção de desvio do caminho, de tirar da rota (enfim, seduzir talvez tenha mais de diábolos do que de religare) acaba incorporando valores motivadores, de iluminação (no sentido da grande tradição dos poetas místicos), de alcance do conhecimento por meio do embaralhamento da razão e da linearidade, isto é, tais estados são conquistados graças à atenção dada a esse ponto indecidível onde o passado e o futuro se anulam – essa nervura do transe poético focado no agora turbulento. Lau Siqueira vasculha “o silêncio extremo” por detrás da palavra, sombra da ação. Para suspender minha leitura (sabendo que ela merece ser retomada e repetida, pois a linguagem de Lau Siqueira assim o exige) segue um poema do livro, na íntegra:


Condição humana

pequenas multidões
no desamparo das horas
sumidas

pequenos desastres
e uma extrema
coragem




[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

Comentários

sandra santos disse…
A poesia de Lau tem mesmo essa facilidade de estabelecer contato com o leitor. Poesia sem Pele, como o próprio título já anuncia, é mesmo epidérmica. Já era no Texto Sentido, seu livro anterior. Mantém essa comunicabilidade. E ainda nos traz momentos de rasgos mais profundos, onde estabelece pontes entre a superfície e a "cutina" primordial.

Boa escolha do poema, Ronald. Um dos meus preferidos.

Sandra Santos
Anônimo disse…
Ronald, venho a público solicitar que incluas uma "errata" ao meu comentário...rsss

onde escrevi "epidérmica", quis escrever "dermográfica"... grata.

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