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a substância moral dos vencedores de prêmios literários


O artista de segunda categoria se submete tanto aos elogios quanto à opinião ruim ou desvantajosa a respeito do seu trabalho. Mas este artista, todavia, não desceu até o mais baixo tanto quanto um seu equivalente insiste em fazê-lo, e sem desprezar alguma perícia nesse exercício. Refiro-me, aqui, ao representante daquela classe de artistas cuja vulgaridade já não se importa mais com as alternativas dos elogios e das opiniões desfavoráveis que sua obra eventualmente venha a suscitar. Pois esse consumado artista medíocre do nosso tempo se socorre antes das gordas somas em dinheiro oferecidas pelos prêmios e da publicidade decorrente do que de um reconhecimento estético adjacente a um julgamento crítico devotado ao seu trabalho quer seja feito pelo público em geral, quer seja por um conjunto de especialistas que, para a saúde de todos, sempre serão questionados e questionáveis.

Se, na condição de vencedor — e agora o nosso sujeito afivela a máscara do escritor —, o seu livro faz jus ao valor em dinheiro estipulado pelo certame, isso já é o bastante para que, perante a opinião do sistema, a obra justifique sua aparição sobre a face da Terra, ou consiga dar alguma satisfação no que concerne à sua qualidade artística, ou literária; o que de resto, e em fim de contas significa o mesmo — embora muitos não se esforcem em fazer concordar os dois qualificativos. Ou seja, quanto maior a bolada do prêmio “disponibilizado” ao escritor que, nesta situação, é antes de tudo um forte felizardo, pois todos os indícios levam a crer que se trata de uma loteria (centenares de candidatos disputando uma vaga, jurados sem rosto, critérios que não fedem nem cheiram...), menores são as chances de que qualquer crítica que venha à tona não seja tachada de revanchista ou invejosa. Parece não haver argumentos pertinentes — e sequer impertinentes — contra o fait accompli dessas fortunas em jogo com que se tenta também calar uma análise crítica possível. Tanto dinheiro não pode ter sido passado em vão para as mãos desse ou daquele artista-escritor. Algo similar ocorre na avaliação crítica do cinema contemporâneo. Os parâmetros comerciais dos recordes de bilheteria (ultrapassados, roçados ou não) impõem ao público a qualidade do filme a ser visto. Quem lê hoje em dia livros que não tenham sido premiados ou figurado ao menos como finalistas nestes festins competitivos?

As comissões julgadoras formadas à primeira vista para a avaliação das peças atentas à “função poética da linguagem”, talvez tenham uma resposta a propósito. Mas feito os personagens-tipo de Kafka, examinados uma vez por Walter Benjamin — esses funcionários das chancelarias e das repartições bolorentas e úmidas —, os membros do júri ocultos em sótãos, cretinos secretários do castelo “por mais alto em que se encontrem são sempre seres decaídos, ou melhor, em decadência, mas que em compensação podem aparecer repentinamente em toda a plenitude de seus poderes, mesmo através de seus representantes mais inferiores e degenerados”. De volta ao nosso caso em particular, e ainda tirando proveito da imagem benjaminiana, os representantes subalternos das comissões julgadoras dos concursos literários, incumbidos em outra esfera de dar relevo à pertinência das escolhas dos seus superiores, são os pseudocríticos do jornalismo cultural que, destacados para reportar esses eventos, viajam a convite das empresas patrocinadoras e cumprem a missão de modo eficiente, isto é, sem pôr em risco a própria pele e preservando tanto a Xerxes quanto a César de qualquer vexame.

Premiações e concursos literários com o aval e o suporte financeiro de grandes empresas patrocinam essa regressão permanente que torna a confraria dos escritores capazes de desempenhar as tarefas estupidificantes que o conivente sistema literário exige deles. O que permanece informe no espírito dos escritores acerca deste estado de coisas é produto da forma por meio da qual se estruturam os embates e acordos socioculturais. Os escritores, esses cidadãos detentores de bibliografias invejáveis, comportam-se assim como parasitas, ou térmitas gigantes. No entanto, isto não se refere às relações econômicas, inclusive porque eles apostam a pele do próprio corpo na confecção dos seus objetos literários com vistas a convencer e vencer a competição, mas às forças da razão e da humanidade já bastante rebaixadas de que à custo se nutrem. A festejada incompetência objetiva dos artistas (“sobre cujas obras se fundam culturas inteiras...”, etc., etc.) denunciada pelos financiadores e administradores da cultura é sempre utilizada por eles de maneira a manter vivo seu próprio caráter filistino, por sua vez incompetente quando se trata de reconhecer as pulsões do subjetivo.

Ainda sob a lógica desse mundo representado ou inventado pelo autor de O processo, poder-se-ia dizer que a motivação dos letrados com veleidades inventivas que se submetem ao modelo dos prêmios “nem tão literários” é a de ser premiado não somente sem mérito, como também ignorando o motivo da premiação — e esta na maioria dos casos resta sem uma justificativa plausível.

Todo aparato que cerca e embebe de mitologias as obras vencedoras pretende dizer que não há esperança de fracasso no horizonte da fortuna crítica que está reservado a elas. Não há esperança, ainda que lhes roce de leve a sombra, a pluma de uma objeção problematizadora a respeito do seu construto literário. E é talvez esta ausência de esperanças que faz surgir nelas de repente a vulgaridade de que até então não se revelavam portadoras.

Os pragmáticos representantes das empresas e os obedientes servidores do estado ligados aos fatos da cultura, associados ou não na instalação e realização de prêmios, concursos, oficinas, entre outras atividades, talvez façam isso por sofrerem uma atração pelos sujeitos da “alta cultura” (escritores, artistas, pensadores, etc.). Pois o refinamento em que por acaso esbarram quando confinam com essas pessoas lhes promete aquilo de que são privados por serem incultos.

Dessa sensação de inferioridade experimentada por esses empreendedores e marqueteiros agora encravados na dinâmica cultural resulta talvez uma tradição que não contempla nas relações entre o artista e as figuras desse mecenato (a movimentar-se em todas as direções) a possibilidade de que os últimos sejam vítimas de qualquer desvantagem ou prejuízo. Isto significa que todas as “desinteressadas” atuações na área (oriundas quer dos interesses públicos, quer dos interesses privados) servem mais aos próprios promotores do que a qualquer outro pobre diabo. É o caso já mencionado aqui em Sibila — num outro artigo em que trato do mesmo tema — da Câmara Brasileira do Livro, um órgão eminentemente patronal, que deve atender naturalmente às necessidades das editoras, mas que ao mesmo tempo é a mantenedora do Prêmio Jabuti. Com efeito, os lucros dessa organização poderiam ser distribuídos através da proposição quem sabe de uma outra política de direito autoral mais justa, e não só repassando em tom retórico uma ínfima parte do que Xerxes e César “conquistaram com trabalho duro e o suor do rosto” ao sortudo vencedor do prêmio.

Portanto, as premiações que guindam ao pódio mais elevado apenas “um” concorrente (o restante que se vire), não reforçam, embora pareça ser esse o objetivo, a idéia de que a invenção é uma coisa difícil e rara, mas antes dão corda à noção ou à figura do sujeito que, contra tudo e contra todos, se faz por si mesmo. Assim, o autor que da noite para o dia vê sua conta bancária aumentar em alguns milhares, mercê do prêmio em dinheiro recebido, enrica (ao menos temporariamente) e se percebe a si mesmo como o herói que graças ao seu gênio e astúcia, conquista um espaço “com suas próprias forças”. Alguns atribuirão ao acontecido um sinal da predestinação do nosso autor. Sua trajetória exemplar um dia haveria de ser reconhecida. Mas esse reconhecimento menos retardatário do que verdadeiramente irracional se funda numa sociedade que se mantém coesa através de uma desigualdade econômica absurda.

A obra premiada é, portanto, um livro bom e de qualidade inquestionável: fusão do seu valor interior com o status alcançado pelo montante de dinheiro a que fez justiça após atravessar a cavaleiro uma disputa encarniçada com as demais pretendentes. A excelência unida agora à riqueza repentina. Desde Homero, como refere Theodor W. Adorno, a paidéia grega promove a coincidência entre os conceitos do bom e do rico. Nosso escritor premiado se projeta para um novo lance da mobilidade social a que tem direito. Às qualidades de escritor competente agrega a de homem que finalmente sabe não desprezar o dinheiro que a fortuna deposita a seus pés. Assim, além de dominar o ofício das letras, apresenta-se agora como o homem bom que se domina a si mesmo feito algo que ele possui: sua essência irredutível a qualquer outro tipo de nobreza que não comporte uma dose de cinismo, tem como intento o poder de dispor tanto das coisas materiais quanto de penetrar naquilo que não se encontra à mão, isto é, as coisas do espírito que ainda dizem respeito ao moderno e bem sucedido mundo das altas literaturas. E quanto mais bem pagas e destituídas de sua physis por meio da publicidade, mais altas.



Comentários

Anônimo disse…
muito bom. gostei muito dessas idéias. bem interessantes pra nossos tempos de futilidade artística.

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