Pular para o conteúdo principal

the congo de vachel lindsey agora em português

www.editoraeblis.com

Do ponto de vista de sua ideologia The Congo — study of the negro race /Congo negro (Editora Éblis, 2009) para o paladar contemporâneo, pode ser interpretado como um poema ultrapassado. Em seus versos, formas clássicas de preconceito racial e religioso contra o negro vêm à superfície a todo o momento. Neste sentido, a intenção pretensamente esclarecedora contida no sintagma que complementa o título do poema, tem algo de patético, pois esse “study of the negro race” se revela tão vincado de superstições e estereótipos com relação ao seu objeto de estudo que acaba por obliterar a possibilidade efetiva de algum desvelamento a propósito das perplexidades e dos signos envolvidos na fatura da obra.

Mas o poema de Vachel Lindsay não é um caso isolado dentro das contradições que envolvem uma tradição de representação do outro dentro da literatura. As imposturas que acompanham inadvertidamente suas boas intenções são verificáveis — e similares àquelas encontradas — também em outros textos conhecidos e elogiados por todos nós. Cito alguns exemplos: os poemas negros de Urucungo de Raul Bopp; “Irene no céu” de Manuel Bandeira; “Essa Negra Fulô” de Jorge de Lima, etc. Tais obras, segundo o poeta Oliveira Silveira (1941-2009) são poemas que atendem a uma temática “negrista”, isto é, experimentos eventuais de linguagem no percurso textual desses autores que, a rigor, não passam de forasteiros simpatizantes do “assunto”. Em outras palavras: brancos escrevendo sobre negros com vistas à ampliação do repertório.

Nessas obras esteticamente bem-sucedidas de homens cultivados num safári através da selva áspera e forte, subjaz um “problema do negro” que à força de tanta reiteração (ardis de séculos e simbologias duvidosas) nos leva a crer em sua existência: aprendemos a temer infantilmente o Congo-tipo, selvagem e belo, bárbaro e canibal — estupro de donzelas brancas enfeitiçadas por Mumbo-Jumbo ou Pai João. E não suspeitamos que nossos irretorquíveis autores, graças ao seu engenho, acabaram inventando um “problema” na tentativa de fazer um outro invisível aos olhos de todos. Ou seja, o que temos mesmo, deixando de lado superciliosos eufemismos, é um “problema do branco” que, infelizmente, permanece ainda sem o seu study of the white race.

De outro modo, feito tanto poema bom, The Congo leva em seu bojo essas e outras contradições. Mas as grandes obras de arte são o que são porque envelhecem naquilo em que podem envelhecer. E o que permanece atual no poema, ganha relevo na tarefa tradutória quando esta se mostra atenta à visada sincrônica no trato com aqueles insumos inventivos da tradição ainda de interesse ao presente.

Essa primeira tradução para o nosso idioma — e isso, por si só, já seria suficiente para depor em seu favor — do poema mais popular de Vachel Lindsay, só foi possível graças ao entusiasmo e à pertinácia de poeta-editor de Ronaldo Machado que encontrou na escritora e professora Luci Collin a interlocutora e tradutora ideal para o projeto. A formação musical de Luci Collin também foi fundamental para verter The Congo para o português e, felizmente, de uma maneira em que não se perdem suas valências melopaicas. A tradutora-poeta — conhecedora, por exemplo, da performática vocogestual de Vachel Lindsay —, ao sublinhar nas soluções rítmicas encontradas, a importância da música verbal na estrutura do poema, figura expressiva por meio da qual o leitor, como argumenta J. L. Borges, primeiro sente o significado, confere à tradução o estatuto estético a que faz justiça. Na oficina do esforço translatício essa tensão não pode ser atenuada, ainda mais se levarmos em conta a relação de rivalidade produtiva que, com o passar do tempo, se estabelece entre o original e suas versões.

Luci Collin não se deixa enfeitiçar pelo malabarismo tradutório. Portanto, o “significado último” do poema, embora não seja desprezado por sua tradução, ocupa o lugar apropriado quando o que está em causa é a função poética, isto é, o seu vir-a-ser semântico será uma conquista eventual do leitor (ou, desde um ponto de vista intertextual, dos próximos tradutores). Toda significação, ao fim e ao cabo, se apresenta sempre como uma instância fugidia e controversa.

Finalmente, boas vindas ao Congo Negro brasileiro e uma excelente leitura aos interessados.

Comentários

JSL disse…
Caros

Buscamos promover a literatura e agradecemos possam enviar contactos
de poetas dos palops, para que possam fazer parte da nossa antologia:

www.7pecados.blogtok.com


projecto de economia solidária

vertente: edição em grupo

ao custo 0

Obrigado

P`la equipa

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a

o falso problema de ugolino

A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma - aparente - scriptio plena . Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Nesse breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora, vencido pela fome, os cadáveres dos próprios filhos e netos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino com