A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma - aparente - scriptio plena. Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído
Nesse breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio
“A boca levantou do vil repasto
aquela alma, limpando-a no cabelo
do crânio que ela havia por trás já gasto.
E começou: ‘Medonho pesadelo
queres que evoque, e o coração espavente,
antes que o diga, só de concebê-lo’ ”.
(trad. Italo Eugenio Mauro)
Dante instiga ou ludibria a imaginação do leitor, apresentando logo no primeiro terceto a sombra de Ugolino devorando o crânio do seu suposto traidor, o arcebisbo Ruggieri. A imagem pode induzir à leitura de que Ugolino talvez tenha devorado os corpos de seus filhos e netos, embora não a suporte em definitivo. É uma espécie de finta, de recurso dramático, prepara, tensiona, e até mesmo, manipula a emotividade do leitor. É preciso ter estômago ou ser um monstro para comer esse “fiero pasto”.
No terceto seguinte, o fragmento “Medonho pesadelo queres que evoque...” é a tradução para “Tu vuo’ch’io rinovelli disperato dolor che’l cor...” (o grifo é meu). Ugolino se desespera ao re-contar, ao renovar, isto é, ao trazer à tona novamente a dor que apavora seu coração. Contar, evocar, renovar o acontecido por meio da memória, etc., apontam para os sentidos originários de novela, isto é, narrativa, conto, etc. A audiência quer que Ugolino rinovelli sua dor para que ela (a dor) se converta em símbolo.
“Quando a luz inda escassa se apresenta
no doloroso cárcer, meu semblante
nos quatro rostos seus se apresenta.
Mordi-me as mãos de angústia delirante.
Eles, cuidando ser da fome o efeito,
de súbito e com gesto suplicante,
disseram: ‘menos mal nos será feito
nutrindo-te de nós, pai: nos vestiste
desta carne: ora sirva em teu proveito’ ”.
(trad. J. P. Xavier Pinheiro)
O tradutor, nessa passagem, atenua o que em Dante soa mais áspero e menos alusivo (podemos supor que o tradutor levou em consideração para a sua solução as questões de ordem métrica). Senão, vejamos: Ugolino morde as próprias mãos, ferido pela angústia de ver seus netos e filhos definhando. Por sua vez, eles interpretam sua atitude cuidando ser efeito da fome. No original, eles concluem que seu avô e pai procede assim per voglia di manicar. Por vontade de comer. O verbo manicar é cognato de manducare, mangiare.
No entanto, quando Dante atinge o momento extremo do episódio de Ugolino, e sempre tirando proveito dessa dialética, desse jogo de avanços e negaceios, o poeta florentino propõe um verdadeiro “verso aberto” (opera aperta) onde o desfecho resta em suspenso como um acorde dissonante. Dante recua daquele momentâneo “realismo” algo cruel, e convida o leitor a se equilibrar nesso fio hesitante que diz respeito ao julgamento de Ugolino: Poscia, piú che’l dolor, poté’l digiuno. O poeta deixa de lado a scriptio plena, mais estável, mais apta a pôr as coisas em seus devidos lugares. O verso da Commedia não condena nem absolve Ugolino.
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Carmen Silvia Presotto
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