O título do conjunto
aponta para a ideia-imagem da poesia como carne viva; corpo tecido, construído,
coisa mortal redimida pela linguagem. Ou ainda, como se a poesia fosse um
discurso que, à força de desnudar tanto a fragilidade do universo (no sentido
de ser algo que veio a se constituir contra todas as probabilidades), como o
absurdo da condição humana, teria que se submeter necessariamente ou, antes, simultaneamente,
a um autodesnudamento. Talvez por isso, Poesia
sem pele apresente um significativo número de metapoemas ou de poemas que,
ao mesmo tempo, pensam aspectos relativos às determinações da poesia, bem como
investigam os dilemas da intuição estética. Ou seja, a poesia desnuda sua
pureza aos seus celibatários, os leitores a serem comovidos. Comover envolve
algumas dessas acepções:
provocar ou sentir enternecimento; fazer perder ou perder a dureza de alma.
Lau Siqueira
inscreve sua poesia (corro o risco de simplificar demais, mas vá lá) dentro de
uma linhagem leminskiana, ou de um discurso poético que evoca traços hagiográficos
com o pé na estrada, onde contam como pontos marcantes: a brevidade, um gosto
pela tirada e/ou trocadilho (ex.: veloz a
vida pássaro por nós), e uma nostalgia filosofal que ganha forma no uso vertiginoso
da copulativa é. Cito: “o poeta/ é o
que busca na palavra/ a dimensão do átomo”; “poema é face descoberta/ de tudo
que pulsa”; “a solidão é esse barco/ que jamais naufraga/ ou sai da deriva”; “o
alaúde é a espera do que/ não mais pertence ao oco/ das horas transgredidas”.
Os poemas de Poesia sem pele se encaminham para uma imagética meditativa latu sensu (o poeta como aquele que medita, mergulhado em profundos
pensamentos que se corporificam em palavras: cogitabundo,
bios theoretikos). A vida
contemplativa afeita à plasticidade do poema, ou reimaginada na tensa calma
desse objeto verbal de cunho radicalmente estético.
Uma
coisa é olhar ou inspecionar a coisa (tal como João Cabral de Melo Neto), outra
é olhar através da coisa na esperança de encontrar, depois dela, o algo mais
que mitigue, ainda que de maneira efêmera, certa angústia existencial, a finitude. É
nesse sentido que Lau Siqueira talvez seja utópico, como diz a prefaciadora. Para o poeta “o pássaro é além do pássaro”; “lição necessária de voos e pousos” (grifo
meu). Lição: ensinamento-analogia, aviso
ou sugestão que se obtém de experiência adquirida por meio de fato vivenciado;
exemplo instrutivo; novo modelo de sensibilidade.
Mesmo
o conceito, ou a metáfora da sedução
como divisa estética, que o poeta invoca na epígrafe de Poesia sem pele, e cuja etimologia contém a acepção de desvio do
caminho, de tirar da rota (enfim, seduzir
talvez tenha mais de diábolos do que
de religare) acaba incorporando
valores motivadores, de iluminação (no sentido da grande tradição dos poetas
místicos), de alcance do conhecimento por meio do embaralhamento da razão e da
linearidade, isto é, tais estados são conquistados graças à atenção dada a esse
ponto indecidível onde o passado e o futuro se anulam – essa nervura do transe
poético focado no agora turbulento. Lau Siqueira vasculha “o silêncio extremo”
por detrás da palavra, sombra da ação. Para suspender minha leitura (sabendo
que ela merece ser retomada e repetida, pois a linguagem de Lau Siqueira assim
o exige) segue um poema do livro, na íntegra:
Condição humana
pequenas multidões
no desamparo das horas
sumidas
pequenos desastres
e uma extrema
coragem
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor
de, entre outros, Confissões Aplicadas
(2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
Comentários
Boa escolha do poema, Ronald. Um dos meus preferidos.
Sandra Santos
onde escrevi "epidérmica", quis escrever "dermográfica"... grata.