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Uma evocação impertinente





No Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1923), podemos vislumbrar, talvez, as primeiras iluminações a respeito do carnaval enquanto sistema de signos e de comportamentos representativos, por assim dizer, da nossa diferença cultural exportável. Para Oswald, o carnaval opera a síntese espetacular e especular de nossa suposta brasilidade, conquistada — quem sabe como uma forma de auto-reparação — por meio de uma libidinosa performance musical, rítmica, coreográfica e visual, e que mais tarde se desdobrará, na perspectiva oswaldiana, na antropofagia ritual como traço de nossa formação.  Num certo sentido, o Manifesto do poeta do modernismo, é, ele mesmo, em diversos aspectos, um grande samba-enredo avant-la-lettre. Neste verdadeiro “samba do branco-doido”, Oswald de Andrade nos passa a sua falação de mitômano fazendo-nos cúmplices das suas ilusões e perplexidades. Engordamos esse corso que segue passando pela avenida.
         No segundo parágrafo do Manifesto da Poesia Pau-Brasil nos deparamos com a seguinte afirmação: “O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça”. A imagem proposta pelo poeta parece entrar em conflito com o estágio recente alcançado pelo carnaval carioca, carnaval-escola-de-samba lido, hoje, por muitos em termos de turismo e de festa sexuais em cujo avesso se debate um moralismo carola, pentecostal; festival do elogio perdulário da genitália mulata e dos peitos alvos e siliconados oferecidos ao voyeurismo da arquibancada popular e do camarote novo-rico. Tudo leva a crer tratar-se de um espetáculo de perversões romanas. Mas esse carnaval não é mais religioso, e nem mesmo participa da ordem do artesanato, isto é, há muito abandonou seu talhe naïf. De outra parte, apontar o carnaval carioca, como pretendem os estetas das revistas semanais, em termos de que seria a versão contemporânea, a transculturação da ópera wagneriana, só atende aos interesses das convenções da anomia e à idéia subalterna de conceder ao carnaval o direito a uma espécie absurda de mobilidade social, pois no gozo desse novo status de “ópera moderna”, nossa maior realização cultural se tornaria merecedora de uma compensação, de uma mudança, e para melhor. O cabelo “ruim” se beneficiando da chapinha e das modernas técnicas de alisamento cosmético. 

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