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blackface em welles




(Othello, 1952)




(fotogramas de Touch of evil, 1958)

No filme A Marca da maldade (Touch of evil, 1958), de Orson Welles – cuja ação se passa na fronteira entre México e Estados Unidos –, o personagem principal, ao lado do próprio Welles (na figura do reaça e asqueroso policial Quinlan), se chama Vargas, um oficial mexicano do Deptº de Narcóticos interpretado por Charlton Heston sob o verniz opaco de uma incômoda blackface. Ambos investigam um atentado à bomba que mata um político estadunidense em plena aduana. A fábula contém elementos extremamente atuais: terrorismo, conflitos étnicos e de fronteira.
A esposa do justiceiro latin lover Vargas (impossível deixar de lado a condição de galã de Charlton Heston) é uma americana caucasiana (blonde) que por pouco, a certa altura da narrativa, não é seviciada por uma gangue de jovens mexicanos. Para o americano médio seria duplamente ofensivo testemunhar a nívea estrela de Hollywood Janet Leigh (musa esfaqueada/decupada dois anos depois num banheiro de motel de estrada por Hitchcock em Psycho, 1960) aos beijos com um ator mexicano de verdade e, além disso, assistir passivamente ao estupro da diva perpetrado por transviados de jaquetas de couro nascidos no pequeno país vizinho. O simulacro de mexicano (Heston) fez as cenas românticas mais toleráveis à audiência da época.
As contradições são o sal da vida, diria o Conselheiro Aires. Em Othello (1952), versão fílmica de Orson Welles, quem encarna o mouro, refém menos do seu ciúme do que do insidioso Iago, é o mesmo diretor-ator afivelando a costumeira blackface. O curioso é que em sua juventude, Welles, como diretor de teatro, chegou a encenar Shakespeare com um elenco só de atores negros.

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