Pular para o conteúdo principal

A ESPESSURA OSSAMA

A ESPESSURA OSSAMA DO POEMA

Ronald Augusto[1]

Ossama (Letras Contemporâneas e Editora da Casa) é o novo experimento neossimbolista – prefiro esse epíteto a neobarroco como meio de aproximação à áspera poesia – de Dennis Radünz. Entenda-se “experimento” como conquista, determinação inventiva, e não como acontecimento invertebrado ou sem desdobramentos. A ossama (puzlle perverso) textual toda empilhada; os destroços de tradições e rupturas. Pilhagem de linguagens que entranha o corpo fraturado do poema. Análogos à imagem das estátuas jacentes metaforizadas por João Cabral, os poemas de Dennis Radünz falam do rosto e do sobrerrosto, da carne e da política, da cédula e do sangue, entretanto, todo esse conjunto de cifras corrosivas, inicialmente evocativo de certa realidade, só faz a poesia de Ossama se indispor (no sentido de uma negatividade crítica) radicalmente com o real.
Não há sangue em sua poesia, Dennis Radünz abole personalidade e emoção atingindo o nervo de uma linguagem irredutível à nostalgia do estilo; toda a teatralidade é descarnada até o osso do signans (o aspecto sensível e por contato direto do signo estético), e tal como as estátuas de Cabral, os poemas de Ossama carregam em seu centro “veias de arame rígido”, mas sua intrínseca intransigência estética migra para a verdade objetual do poema em sua superfície, quer dizer, os poemas estão sempre estranhamente vestidos de sua morte: “a carne de cordato/ umbilical (os dois olhos de cultura)/ mas se desnaturou/ ao ler caída a folha fêmea”. Ossama varre os restos mortais e linguais da cidade, da sociedade e dos discursos da estupidificação que se sedimentam no pensamento. Ossama, espécie de ultima verba que reencarna sua aspereza dúctil no tempo através da consciência da imperfeição da linguagem; imperfeição por meio da qual a poesia se plasma e esbarra, realizada, em uma razoável incomunicabilidade, no fracasso exitoso do símbolo; a face ficta do poema: “deserções (uma desaparição que fica)”.
A poesia de Dennis Radünz, cujos questionamentos – sejam sobre os limites da expressão verbal, sejam sobre os limites da representação – o fazem suspeitar do objeto resultante da nomeação, é uma ferramenta com que o poeta se revira; se escava; se extravia. Não se pode afirmar que em Ossama o poeta faz a opção pela arte em prejuízo da vida, como se dera uma piscadela de olhos ao simbolismo lato sensu de que às vezes é filho. Não é isso que está em questão, afinal, Dennis Radünz sabe que a vida e seu verismo, há muito, estão sujeitos a “uma falha no sinal de vídeo”. Por essa razão a linguagem de Ossama eviscera sem comiseração os signos do nosso tempo. Ossama: esse corajoso sinal de menos da poesia “em mesa posta para o espírito escasso”.



[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a

o falso problema de ugolino

A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma - aparente - scriptio plena . Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Nesse breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora, vencido pela fome, os cadáveres dos próprios filhos e netos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino com