Ninguém me pediu, mas vai assim mesmo
Ronald
Augusto[1]
Ao contrário da minha
geração, muitos escritores e poetas negros mais jovens começam a sua formação tendo
já como tradição um grande número de obras de artistas que se assumem negros de
modo mais ou menos alusivo em seus textos. Isto é, esses jovens escritores
trabalham a partir de uma literatura negra já constituída e ao mesmo tempo em
processo. Essa conquista precisa ser festejada, trata-se mesmo de um lugar que
devíamos alcançar e alcançamos. A partir desse ponto não há mais retorno.
No entanto, quando
comecei, na década de 1980, havia pouca produção literária negra e o pouco que
havia era tremendamente desconhecido e – por razões que o racismo naturalizado
explica muito bem – negligenciado sem mais. Por outro lado, isso só se tornava
um drama para quem tinha, como eu, algum interesse em buscar e discutir as
condições de possibilidade de uma produção literária de autoria negra. Pois
havia e há diversos autores negros que não têm interesse nesse debate.
Deste modo, em razão
dessa relativa carência com que à época eu me defrontava, minha formação se deu
por vias bastante canônicas, mas isso não deve constituir um problema muito
grande, desde que o sujeito trabalhe criticamente essa tradição, isto é, analisando
suas contradições, compromissos (tanto literários, quanto extraliterários) e
jogos de dissimulação. Observe-se que esse trabalho crítico sobre o cânone
branco-ocidental não precisa significar mera exclusão. Ainda que a formação de
um repertório individual implique em certa medida o descarte desse ou daquele
dado informacional, o esforço crítico é essencialmente um trabalho de revisão,
tanto do legado, quanto dos nossos pressupostos de escolha e, por outro lado, uma
imperiosa invenção de outros modelos de sensibilidade.
Se eu tivesse que
apresentar alguma sugestão aos jovens escritores negros em formação, seja na
perspectiva de um diálogo com a tradição, seja na perspectiva de situar-se em
relação ao presente, eu diria que é importante, sim, prestigiar e radicalizar
essa vertente ou literatura negra e, a par disso, experimentar uma leitura o
quanto possível distante do pathos ou
da fidelidade ao compromisso com a causa. A eventual ultrapassagem dos limites
da vertente negra, tendo em vista o percurso formativo desses escritores e
poetas, serve para colocar essa tradição em relação, isto é, trata-se de
estabelecer múltiplas relações estéticas entre formas discursivas.
Não custa lembrar que
muitos escritores da minha geração, bem como os que a precederam precisaram
enfrentar, cada qual a seu modo, essa mesma tradição que, em que pese ser
bastante eurocêntrica, não deixa de ser também bastante complexa e
contraditória. Eles souberam tirar proveito do que há de melhor nessa tradição
e o mesmo procedimento pode ser adotado com relação às muitas tradições e
discursos que temos a disposição.
Em outras palavras: é
essencial ir às fontes. Por exemplo, duvido que Oswaldo de Camargo, Geni
Mariano Guimarães, Edimilson de Almeida Pereira ou Jônatas Conceição da Silva,
não tenham lido Sousândrade, Manuel Bandeira, Drummond, Murilo, Clarice ou
Cabral (para ficar apenas com os brasileiros). Isso quer dizer apenas que é
preciso conhecer também, e a fundo, as obras desses poetas, ou melhor, conhecer
a música verbal deles. E não é suficiente a leitura de poemas esparsos na internet,
é essencial conhecer o conjunto da produção de cada um. E muitos devem ser lidos
independentemente de gosto, de simpatia ou de ideologia. A primeira vez que li
Cabral não gostei, quase desisti. Mas o problema é que o meu repertório na
época não suportava aquele tipo de poesia; depois fui ampliando meu estoque de
vozes e dicções poéticas e, por fim, pude entender e fruir a proposta da poesia
do pernambucano. Sei que o exemplo é pessoal demais, mas talvez sirva.
Sempre vale a pena voltar
mais atrás na tradição, ou aventurar-se através de outros mapas. Recentemente
tenho observado que a noção de tradição ou de legado mudou um pouco. Quando um
escritor jovem lista os nomes do legado literário que lhe serve de inspiração,
noto que suas referências não retroagem muito mais aquém dos modernistas de 22.
Esbarram nesse período; isso ainda é muito recente. É preciso ler autores mais
remotos ainda. Séculos, XVIII, XVII e XVI. E incorporar escritores
estrangeiros, mesmo que em tradução, aliás, hoje há excelentes traduções para a
poesia. E é preciso ler tudo isso do ponto de vista do artesanato e não apenas
com um apetite acadêmico. Repetir para aprender, aprender para criar; essa é a
sequência. Como esses escritores criam imagens? Como eles agenciam questões
fônicas, visuais e espaciais? Como o som e o sentido se embaralham em seus
poemas?
Desde que mantenham o
distanciamento crítico, acredito que os jovens escritores negros não vão perder
nada lendo os acervos dessa tradição que escapa, a princípio, à vertente negra.
O fato é que o antigo desprezo elitista e a reativa substituição de um
repertório por outro parecem encerrar a discussão nos limites apertados de uma
intransigência recíproca. Assim como minha geração conquistou um monte de
formas e valores inventando uma literatura negra a par de nossa formação originária
mais tradicional, a geração mais nova pode ampliar o leque compositivo e de
linguagens levando a cabo uma nova transfiguração dessa tradição da qual, em
boa medida, cada um de nós é um produto singular.
[1]
Ronald
Augusto é poeta, músico,
letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya
(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No
Assoalho Duro (2007), Cair de Costas
(2012) Decupagens Assim (2012) e Nem Raro Nem Claro (2015). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blgspot.com
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