Contra a cafonice amorosa
Cometer poemas carrega lá seus
perigos. Quando a amada é alvo do verso então, avista-se tenebroso triângulo
das bermudas com seus vértices de naufrágio: a cafonice, o sentimentalismo e o
derrame lamuriante sem beiras nem eiras.
E cantar musa viva e poetisa, quem se atreve? Ronald Augusto o fez em “À Ipásia que o espera” cruzando incólume
tais ameaças com língua atesada, vento de popa e verga firme. E quando a maré
não estava pra peixe, rumou por terra, “oito horas e meia de viagem/ dentro de ônibus
em noturna via”. Diga-se, de passagem, que Ronald articula seu périplo com
requinte multimodal. Sua caixa de ferramentas é repleta de surpresas.
Destaco um quarteto de pasmos e
admirações. Começando pelos caligramas espalhados aqui e acolá, com aquele viço
de coisa desde sempre provisória que lembra alegremente o caderno de notas que,
ao que tudo indica, está sempre à mão do poeta (e de sua musa) pra conter
jorros de palavras e garatujas. Oxalá nos presenteie o autor com alguma outra
edição com mais exemplares. Há uma tradição latente a ser preenchida, passando
pelas ilustrações de “Primeiro Caderno do
Aluno de Poesia Oswald de Andrade” e “Tatuagens”
de Edgard Braga, espécie de action poetry
a plenos punhos, que Ronald nos dá pequena e encorajadora amostra.
Outra banana onde poetas de todos
os matizes e quadrantes costumam escorregar é a representação do que nos passa
na cachola quando sonhamos ou daquela zona gris entre sono e vigília onde
transitam vários poemas de “À Ipásia que
o espera”. A esparrela da écriture automatique, que tanto
arremedo recebe na levada poética dos dias que correm, desemboca na direção
contrária do engenho construtivo e da concisão que cabe esperar da boa poesia
de invenção, do trobar ric que Ronald
executa sem mutreta.
Embreto aqui meu segundo pasmo
admirado. Ronald é craque no quesito de mesclar sono, sonho e sexo. Quando não é
o poeta que sonha; vela, insone, o sono da amada. Quando sonha me faz recordar Quevedo
(“¡Ay, Floralba! Soñé que te… ¿Direlo?”), Gregório (“Ai, Custódia! sonhei, não
sei se o diga”) e Giambattista Marino, mestres no artifício barroco do sonho
erótico, mesclando desejo e intangibilidade. Quando vela, é na presença do
corpo quase sempre desnudo da amada – donde um dos picos do livro, priápico na
veia:
“A musa se deita e dorme
(após
servir-me dela). Observo-a
desde minha coya de amor: o
cós
(essa espádua que ondula), a
desora,
o sono de lado e a concha da
axila.
Em seus sonhos toda se
dessigila”
O terceiro mote é a bem bolada
síntese do ar coloquial da língua materna e da sutil arte de espanar
dicionários. Ladeiam ‘beiços’ e ‘miscíveis’, ‘menina’ e ‘incunábulo’,
‘tremelica’ e ‘senescente’, ‘pau’ e ‘térmitas’, ‘neguinha’ e ‘libada’, ‘coxas’
e ‘decúbito’. Forçar o léxico na direção do menos dito ou mesmo do inaudito é
louvável ars poetica.
Meu quarto e derradeiro pasmo é
saborear a destreza com que Ronald desvencilha-se da maçada metalinguística do
poema que fala dele mesmo, doutros poetas, doutros poemas, de tramas ao
escrevê-lo etc. Toda vez que a intertextualidade marca presença, o faz com
engajamento preciso. Ovídio na função de abre-alas. Manuel Bandeira,
onipresente. Pound, envelhecendo e amando. Octávio Paz, Murilo Mendes, Dante e
Oswald, de soslaio mãos dadas com Caminha. E quantos outros minha ignorância
não permitiu ver? Provavelmente tantos quantos os pasmos que me passaram
batidos, os alumbramentos que me reserva a próxima deitada de olhos nas páginas
de “À Ipásia que o espera” pois é
caminho que merece outras caminhadas. Salve Ronald!
[1] Eduardo Vicentini de Medeiros, é
professor de Filosofia (PNPD Capes Unisinos) e Editor Assistente da Revista
Filosofia Unisinos.
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