O princípio da tolerância enquanto
fachada (III)
Ronald Augusto[1]
O
melhor modo de segurar o chicote
Em um dos seus escritos Machado de Assis (ou
pode ser que isso se encontre na voz de um de seus personagens...) afirma, com
a ironia que lhe é peculiar, que a melhor maneira de segurar o chicote é pelo
cabo. Essa é a perfeita metáfora da tolerância minimalista e/ou oportunista. Através dela confirmamos de forma
intuitiva que é melhor ser estimado (ou estar no papel do tolerante) do que ser
tolerado.
O autodeclarado tolerante toma a si mesmo como a medida para
estabelecer o modus faciendi do
princípio e da atividade de tolerar que, de alguma forma, se apresenta agora como
uma passividade de fachada. A tolerância, enquanto normatividade aplicada à
experiência do mundo vivido, parece se resignar com a constatação de que, no
interior das interações pessoais e sociais, há situações discursivas e práticas
em que a discordância não pode ser superada. Em favor disso o senso comum
entende que, por exemplo, política e religião são coisas que não devem ser
discutidas. Nestes casos o recomendado seria suportar ou demonstrar
consentimento às opiniões e crenças do outro. Ainda que uma suspensão
temporária da discussão, a bem de serenar os ânimos e tendo em vista a tolerância
como uma regra para o eventual dissenso, não parece estar na base desse tipo de
debate a possibilidade de os tolerantes reconsiderarem suas próprias crenças e
opiniões. Como vimos, algumas ideias e comportamentos podem ser
estranhas à maioria das pessoas, mas segundo o princípio da tolerância, elas
devem ser ouvidas ou respeitadas. Imaginemos que essas ideias e comportamentos
não são necessariamente errados só porque não concordam com a maioria, dito
isto, podemos considerar ainda assim que elas devam ser apenas toleradas? E,
mais, isso parece justo?
Como via de mão única – no sentido
em que, de um modo absurdo, é melhor ser tolerante do que tolerado: melhor ter
o chicote pelo cabo –, a tolerância minimalista
faz com que os envolvidos permaneçam encerrados em seu pathos tanto vivencial, como de valores e, desta maneira, não se
movimentem em direção à desnaturalização das suas opiniões. Tal como na
perversa e irônica noção de tolerância de Locke, referida por Marcelo Dascal,
um dos tolerantes, cedo ou tarde, se mostrará aparentemente condescendente com
as ideias do outro (o louco), mas o outro (louco) é e seguirá sendo algo
inacessível para o tolerante, enquanto ele tem e terá a convicção de que
conhece a verdade.
Ainda que esteja condicionada ao esquema causal, o princípio
da tolerância, se pretende, entretanto, determinado apenas por si mesmo. Devido
a essa ambiguidade constitutiva, a tolerância não pode ser objeto de uma
normatividade ética, pois ela é antes algo da ordem da fé do sujeito em sua
habilidade de julgar o que é ou não tolerável. A tolerância está baseada numa
consciência subjetiva, no decoro e no recesso mais íntimos, cujo acesso não nos
é dado. A tolerância, em nossos dias, sabe a um postulado. E também confina com
um jogo de simulação e dissimulação.
Tolerar o modo de ser do outro não é, em certa medida,
também moralizar? O tolerante talvez se comporte como o moralista convencional
que Nietzsche censura por
ser um indivíduo que não entende a moral como algo sujeito à
interrogação, um problema; como algo que pode ser posto em questão. Neste sentido, se dermos crédito ao argumento
de Nietzsche, tanto o moralista, quanto o tolerante (por se recusar a
problematizar a tolerância enquanto princípio minimalista), não seriam imorais?
Não é de todo descabido afirmar que a tolerância faz
fronteira com o relativismo; trata-se mesmo de uma variante do relativismo. Por
exemplo, quando se considera arrogância ou autoritarismo da parte de alguém
julgar a conduta de outrem, já que o melhor talvez fosse adotar uma atitude de
tolerância em relação às práticas dos outros. Entretanto, o tolerante só admite
um aparente relativismo, pois ao contrário do relativista, por assim dizer, stricto sensu, o tolerante não chega a concordar
de plano com a chance de o conhecimento humano ser precário, nem com a noção de
incognoscibilidade, por exemplo, do absoluto e da verdade, em razão de
condições casuísticas e/ou subjetivas. À diferença do relativista, o tolerante,
não assume que os valores morais (talvez com exceção dos seus) não apresentam
validade universal e absoluta, tampouco dá crédito à concepção segundo a qual
esses valores estariam submetidos ao ir e vir das circunstâncias históricas,
políticas e culturais.
Em seu artigo, já citado aqui, Marcelo Dascal chama a atenção
para os sentidos de “permissão” e do “outro” como o elemento que tem crenças
“estranhas” à maioria; esses sentidos acabam por deprimir o princípio da
tolerância, porque servem ao argumento que visa ao convencimento
da maioria (ou do pensamento dominante) de que é preciso “tolerar” tudo que,
aos seus olhos, venha a se caracterizar como estranho e fora da normalidade. Contudo, tal concepção de tolerância deprime mais os limites
do nosso mundo do que a ela mesma. Pois, segundo Dascal, a
vida em sociedade exige que fomentemos as mais diversas ideias, inclusive
aquelas que são pouco aceitas por essa mesma sociedade precisam ser expressas,
já que a proliferação de ideias e concepções cumpre a função de permitir “uma
‘cobertura’ tão ampla quanto possível da verdade – a proliferação de ideias
divergentes possibilita o conhecimento
da realidade – da mesma forma que o interesse biológico/evolutivo é o de manter
um ‘fundo’ de genes o mais rico possível”.
Esse princípio aponta
para a questão segundo a qual a verdade não pode ser circunscrita a uma só
teoria ou visão de mundo, mas ela como que seria distribuída pelas diversas
teorias e visões de mundo. A verdade talvez pudesse ser recuperada através da
ampla consideração da sequência de teorias e pontos de vista existentes. Contudo,
isso não implicaria em relativismo, mas sim num verdadeiro pluralismo. Um
exemplo, oferecido por Dascal, de tolerância positiva ou maximalista apoiada num princípio eclético e mais solidário é o da
relação de complementação e aceitação mútua (os itálicos são do
filósofo) existentes entre as três religiões mais importantes do Japão:
xintoísmo, budismo e confucionismo. Para o ensaísta essas religiões não se
“toleram” pela eventualidade de uma delas poder assumir posição dominante sobre
as outras, mas apenas porque reconhecem e estimam o valor e a função própria a
cada uma.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros,
Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha
(1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blgspot.com
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