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Do mundo, suas delicadezas e alguns paranapanãs



Do mundo, suas delicadezas e alguns paranapanãs
Ronald Augusto[1]

Um pequeno selo ao pé do título Do mundo, suas delicadezas adverte o leitor que o mais recente livro de Erre Amaral se trata de um romance. Outros paratextos que preparam a fruição do leitor, ou seja, orelha, prefácio, texto da quarta capa, relativizam um pouco mais a aposta na crença de que Do mundo, suas delicadezas seria um romance. Deste modo surgem considerações a respeito da mestiçagem entre formas: a ida inacabada da poesia à prosa, talvez; argumentos em favor da ruptura com os modelos romanescos tradicionais e assim por diante.  Na época em que o autor andava às voltas com a escrita da obra, ele me dizia que estava escrevendo um romance, e me falou brevemente, entre outras minudências, tanto sobre a personagem principal, negra, quanto sobre o extinto vilarejo do interior mineiro que serve de pano de fundo à narrativa. O tempo passa e o livro fica pronto. É editado primorosamente pela Penalux, Guaratinguetá, 2017. Erre Amaral me envia o livro.
Abro o livro. Já nas primeiras linhas, ou melhor, já nos primeiros versos – sim, versos – afirmo para mim mesmo: meu amigo Roberto escreveu um poema-livro. Um grande poema-livro. Meu conceito de poema-livro é mais ou menos esse: um conjunto cuja estrutura de peças entrelaçadas e relacionais se conformam em uma coesão discursiva e semanticamente determinada. O poema-livro pode conter seções, passagens e fragmentos, porém o que conta é o corpo inteiro textual que se projeta como um rio. A propósito, o poema O Rio (1953) de João Cabral – e dele também, só que anterior, O cão sem plumas (1950) –, Poema Sujo (1973) de Ferreira Gullar e, finalmente, Poema sobre Palmares (1987) de Oliveira Silveira, são modelares para o meu conceito de poema-livro. Na poesia brasileira não são muitos os experimentos com o poema longo que se impõe como livro individuado. É preciso considerar os fracassos também. Porque o poema longo, o poema-livro, é de difícil fatura. A maior dificuldade é conseguir manter a tensão e a concentração de linguagem que, segundo Pound, são aspectos necessários para o funcionamento e a eficiência do poema. Felizmente, Do mundo, suas delicadezas, entra na tradição dos experimentos bem logrados. Erre Amaral, alcançou realizar menos um romance que um grande poema. Vejamos alguns excertos: os dois primeiros são versos alexandrinos heterodoxos e o terceiro é um decassílabo sáfico e, embora as escolhas tenham sido feitas ao acaso, todos os versos são oxítonos.

A longa tristeza ao fechar o tempo em cris

[...]

O saco de sarrapilha ao Beto pedi

[...]

O claro-escuro o empatava de ver


Compreendo que é possível situar a obra em uma categoria indecidível de gênero, afinal as discussões sobre gênero literário, ao que parece, já estão bastante desprestigiadas, a tal ponto de as construções híbridas, hoje, despertarem mais nosso interesse e serem, por assim dizer, mais recomendáveis e toleráveis. Não obstante, assumo minha leitura parcial, isto é, tomo partido da crença de que Erre Amaral, na obra em apreço, se resolve pela poesia e não pela prosa. Justifico essa minha leitura-fruição pelo reconhecimento de que o autor investe pesadamente em andamentos paratáticos (narrativa por justaposição de flashes e falas); o poema traz à tona da linguagem apenas os momentos de maior intensidade, como a evocar o restante da trama: o narrado se plasma e se dissipa graças a um tipo de mobilidade e maleabilidade de caráter ideogrâmico; além disso, as dimensões imagética e fônica às vezes quase se tornam mais essenciais do que a própria narrativa.

É invenção de um vate sovina,
Um que não dá a palavra,
Só sopra no ar o sibilino enigma,

O puro deslumbramento,

A oferta do deleite em troca de demorada e lenta queda 


Os versos de Do mundo, suas delicadezas têm seu assentamento no substrato de uma prosa de viés roseano e o ponto mais remoto dessa influência é a oralidade algo barroca da cultura popular brasileira, reinventada pelos modernistas. Em outras palavras, Do mundo, suas delicadezas deita raízes em um registro mais lírico do que propriamente épico – a delicada e exasperante privacidade a contrapelo da razão pública. Erre Amaral dá mais corda ao canto do que ao conto. É como se o poeta-prosador pretendesse retrucar ao monólogo interior de Molly Bloom com a polifonia internalista de Pretinha: as terras do sem-fim de seu mundo subjetivo. Os versos de Erre Amaral, em termos de cadência, seguem em linha vizinha aos versos do poeta Raul Bopp, autor desse outro grande poema-livro Cobra Norato (1931).
Em paralelo a toda essa rosácea de signos, um aspecto de Do mundo, suas delicadezas, me deixou intrigado. Por que a protagonista atende por um nome que hesita entre um epíteto e um apelido? Há o irmão Carlito, a prima Mariana, a tia Marli, porém a protagonista não atende por um nome civil. Seu nome é sua cor. Pessoas negras, graças à persistência do preconceito disfêmico ganham alcunhas que as circunscrevem apenas a um modo do seu ser. Não há chance de individuação e de liberdade efetivas quando essas pessoas, por exemplo, são apeladas como Neguinho da Beija-Flor, Negro Belchior, Jovelina Pérola Negra, Zé Pretinho etc. Erre Amaral deve ter se perguntado sobre os afetos implicados no racismo à brasileira no que respeita às atribuições dos nomes reconhecidos socialmente. O amoroso nome em diminutivo, Pretinha, pretende operar, na trama de Do mundo, suas delicadezas, como um lance de reversão de sentidos e de destinos. É o que parece. Por outro lado, o poeta-romancista não precisa nos apresentar uma solução para esses tópicos controversos, uma vez que, segundo Mallarmé, tudo acaba em um livro. Tudo se dá inapelavelmente na superfície áspera da linguagem. O mundo é sempre uma outra coisa, uma outra cifra aquém e além do texto.
Entretanto, o que importa mesmo é a sensação de liberdade – ou sua imagem espiritual – que a obra de Erra Amaral nos faculta. Com efeito, nossa leitura deve pôr de lado todo e qualquer sintoma de heteronomia, somos executantes, intérpretes de um conjunto de signos poéticos lançados como dados à nossa decifração fruidora e fruível. Somos parte integrante de todas as possibilidades expressivas do texto, desde o seu inacabamento exitoso, passando por sua presença objetual conformada aos limites onde o papel é cortado, e chegando, finalmente, ao sucesso perturbador da experiência estética materializada no poema-livro Do mundo, suas delicadezas. Um capricho ao capricho de Pretinha, essa nuvem de paranapanãs pensamentosos.





[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/

Comentários

Juliano B. disse…
Também considera a prosa do Murilo Mendes mais poesia que prosa?
Juliano B. disse…
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