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fortuna crítica: entre uma praia e outra






Generosa e inflexível


Guto Leite[1]

Escrever a apresentação para um livro de poemas do Ronald Augusto é, antes de tudo, compartilhar da responsabilidade de fazer com que a leitora ou o leitor leve pra casa a obra de um dos maiores escritores contemporâneos do país e que por vários motivos, que vêm ao caso, não goza desse estatuto. Entre uma praia e outra é mais um dos grandes livros recentes do poeta, só que mais robusto, um ponto de chegada de um trabalho cerrado e de excelência. O que o faz chave para a leitura deste tempo, ouso dizer, são suas radicalidades. A primeira: ao investir na independência da palavra em relação ao que expressa e da forma poética em relação ao mundo. O poema não se coloca como continuidade de nossas vidas, mas nos objeta. A segunda: ao tratar de mesma forma o leitor. O poema não embala o leitor. O poema não se curva ao leitor. O poema não serve ao leitor. O poema é um outro. O leitor precisa sair de si para desvendar os termos, a disposição dos versos no espaço da folha, as construções intrincadas decorrentes de uma apreensão complexa das coisas, o mundo do outro, que se abre; e será tão recompensado como nós ao conhecermos verdadeiramente o que não nos é familiar. A terceira: ao não reduzir os temas de que trata para que se tornem amplamente compreensíveis ou amealhem simpatias. Os amores, a violência, o racismo, a tradição, nada é extraído da integridade da experiência humana, sendo portanto mais fortes do que se agitados na condição de bandeiras. Quarta: para conversar com Marx, o tomar sempre das coisas pela raiz, que é o próprio humano. Sua poesia decorre de uma posição desembaraçada de olhar, avessa às correntes, aos modismos, ao beija-mão costumeiro que forja as panelas do mundo literário nacional.
Se me fiz entender, o que gostaria de frisar é que nos últimos anos, na poesia do Ronald, há uma notável acumulação, em grau que não vejo ocorrer em nenhuma outra poética que acompanho. Enquanto outras autoras e outros autores facilitam o trabalho do leitor, "dão pezinho" ou "dão uma mãozinha", como se diz, ou uma ajuda que vem de cacoetes não de todo conscientes a esses autores, com a poesia de Ronald, especialmente neste livro, é preciso encarar o poema, sua própria forma desnaturaliza o gesto de ler e interrompe a maneira mais ou menos sonâmbula em que vivemos. Não raro paro a leitura à cata de um dicionário para precisar o termo e volto com um problema ainda maior, já que os sentidos dos versos se multiplicam. Quando vencemos o poema, o poema não é vencido, porque deixa indissolúvel uma composição cheia de pontas. Não é isso a vida, afinal? Salvo engano, põe em questão inclusive essa estrutura de vencedores e vencidos, que marca até mesmo a linguagem usual, pragmática, instrumentalizada, a serviço da prática.
Saio do livro Entre uma praia e outra, de quatro leituras espaçadas do livro (que condição extática e incômoda esta de escrever a apresentação para um grande livro de um grande poeta!), com a sensação de que ele está cheio da impossibilidade de reduzir a vida a seus usos. Há “vitórias” de Pirro, há boas “derrotas”, há maravilhosas contemplações do que seria o intervalo entre algo importante e outro algo importante, há flagrantes de momentos cruciais, há o homem tentando pegar o tempo com a mão. É, por extenso, a matéria da vida, da língua, da história, dos amores e dos crimes que nos constituem. Sua condição de grande poeta negro brasileiro não é reforçada nem apagada. É. O título também diz isso, eu acho. O que há entre uma praia e outra? O mar, dirá o leitor apressado. Será que é a única resposta possível? Vamos de novo, e de novo, e de novo. Penso que é mesmo extraordinário uma poética ser concomitantemente radical e cheia de matizes, generosa e inflexível. Abra o livro, é o que posso sugerir. Depois é contigo.


[1] Guto Leite é professor de Literatura Brasileira da UFRGS, poeta e cancionista. Finalista do Prêmio Açorianos de Poesia em 2010. Vencedor do Prêmio Açorianos de Criação Literária em 2013, categoria Poesia. Vencedor do Prêmio Açorianos de Música 2017, na categoria de Melhor Compositor de MPB. Autor de seis livros de poesia e dois discos de canção popular.


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