[Arnaldo Xavier, 1948-2004]
O Machado de Axévier
Ronald Augusto[1]
Debater as condições de
possibilidade de uma literatura negra e, paradoxalmente, não situá-la à margem
da nossa tradição literária, como se essa produção de escritores negros aludisse
a alguma forma de essencialismo, não é o que nos interessa aqui. Por outro
lado, é necessário afirmar que essa literatura, além de se comprometer, o
quanto possível, com a instauração de um idioleto literário, com suas
linguagens, inflexões e temas irredutíveis e com os riscos decorrentes de tal
empreitada, ou seja, os variados objetos poéticos enfeixados no corpo da
literatura negra até agora, mais do que se constituírem em um restrito ismo, têm colocado no centro da
discussão o conceito de uma literatura
universal. Universalidade esta que, enquanto conceito – e do ponto de vista
da vontade de estabilização de um determinado estado de coisas –, leva em seu
bojo a presunção de falar sem sombra de ruído a todos os homens e mulheres,
visando passar a cavaleiro por sobre todas as diferenças.
A este propósito, uma
das consequências da aposta na ideia de universal – como uma sorte de óbice
interposto à noção de literatura negra – desemboca na justificação de uma
hierarquia e de um cânone que servem em boa medida apenas à manutenção do
sistema literário e dos modelos consagrados. O que há de potencialmente
falacioso sob a noção de universal acaba por suportar expressões como “alta
literatura”, “poesia pura”, “poeta maior”, “escritor menor”, “literatura periférica”,
ou seja, expressões cunhadas com o objetivo de fazer perdurar um determinado
arranjo de controle e prestigiamento dos grupos envolvidos, seja em relação aos
que compõem o acervo (o legado), seja em relação à produção contemporânea. Mas
não se segue da verificação objetiva de que há obras clássicas que o peso-valor
delas sobre o nosso pensamento deva ser louvado ininterruptamente e sem
questionamentos ou que, em relação a essas obras, não seja possível nem
tolerável o surgimento de empreendimentos críticos e criativos capazes de
propor interpretações e fruições novas a seu respeito.
Quando nos referimos à universalidade dos clássicos ou
simplesmente a ratificamos, desprezamos em boa medida uma espécie de
antitradição que forçosamente resta à margem e, ao mesmo tempo, não damos tanta
importância à recepção cuja função, além de conquistar para o presente o que de
melhor se produz no presente, é a de atualizar a parte viva dos clássicos, isto
é, proceder a uma espécie de intervenção transversal no tecido do passado tendo
em mira as condições e as contingências do nosso tempo. Em outras palavras, tal
angulação interpretativa pode revelar que os clássicos são importantes não
porque falam desde elevadas plataformas universalistas, mas, pelo contrário,
que são importantes porque também foram (e são) parciais e interessados em
coisas particulares. Na verdade, os admitimos como clássicos porque suas obras
representam, principalmente, realizações de excelentes artistas em seus
respectivos domínios de linguagem e porque respondem a algum impasse
poético-político irredutível a uma configuração histórica de que são emanações,
mas onde não cabem inteiramente.
Nesse sentido a
literatura negra, por meio de um – quando necessário – dissimulado estilo da
revanche, no qual é imperioso pôr em questão tanto essa tradição estilhaçada
que a informa, quanto prospectar e inventar outros repertórios de modo a
singularizá-la – e antes mesmo de ser analisada como literatura periférica ou
marginal –, nos sugere que talvez seja importante levar em consideração algo
que em sua constituição poética tem relação com uma determinação
metalinguística. Dito de outro modo, talvez estejamos diante, por assim dizer,
de uma determinação de jongo a servir
de insumo à vertente negra, o que por sua vez a impele a escrutinar de modo
crítico essa literatura canônica, aparentemente sem cor e sem sexo e que,
fingindo não dar atenção a si mesma, tenta esconder, por todos os meios, sua
branquitude macha sob a divisa do universal.
Talvez fosse
interessante enveredarmos tentativamente, em alguns momentos, por um viés
interpretativo que descrevesse a vertente literária negra como uma forma
requintada de sotaque jongueiro. Foi por um caminho análogo que o poeta-crítico
Arnaldo Xavier na década de 1980 chegou a aventar a hipótese de uma estética
exusíaca entranhada na escritura de alguns autores negros[2].
Em “Dha lamba à qvizila: a busca dhe hvma expressão literária negra” Arnaldo
Xavier, através de uma escrita idiossincrática e bastante cummingsiana, defende, por exemplo, as seguintes
propostas:
“Um tempo novo exige
uma nova linguagem. E que esta nova linguagem seja exatamente o sentido
)quizilista(, o gesto (xangótico), a sugestão )ebólica(, a careta (quilombística),
a escrita )exusíaca( que o corpo do Negro aponta de forma própria e
irreversível.”
E foi também seguindo
rastros parecidos, como dá a entender Luiz Costa Lima a propósito de um traço
distintivo do estilo de Machado de Assis, isto é, a escrita da dissimulação,
que ela talvez pudesse ser explicada como a transfiguração de um dado vinculado
ao modo negro-brasileiro – entro outros modos – de ser-no-mundo, a saber, o jogo da capoeira enquanto uma forma de
filosofia prática: a ginga que se resolve em pensamento cool. Ao analisar a aparente frivolidade, as negaças e a contida ironia
das crônicas escritas por Machado de Assis, entre 1872 e 1879, para a Gazeta de Notícias, o crítico se refere
de forma direta ao autor de Dom Casmurro
como “mestre de capoeira”.[3]
Ao reconstituir fatos
(relevantes ou não para a sociedade de seu tempo) ocorridos ao longo de uma
semana, Machado de Assis se comportava menos como documentalista do que como
escritor. A memória de uma semana recebia os golpes transfiguradores de sua ginga,
“a capoeira da palavra” de acordo com Luiz Costa Lima. As crônicas do Machado
mestre de capoeira, no que toca ao problema da fidelidade ao real, seguem de
perto a percepção nietzschiana segundo a qual a história sobrecarrega a
memória, fazendo lerda a inteligência. Os jogos e os jongos do engano do bruxo
negro do Cosme Velho seguem a espera de estudos menos tradicionais
[1] Ronald
Augusto nasceu em
Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e ensaísta. É
autor de, entre outros, Homem ao Rubro
(1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões
Aplicadas (2004), No Assoalho Duro
(2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida
(2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e
é colunista do site http://www.sul21.com.br/jornal/
[2] DUARTE, Eduardo de
Assis, organizador. Literatura e
afrodescendência no Brasil: antologia crítica / Belo Horizonte : Editora
UFMG, 2011. vol. 4, p. 210
[3]LIMA,
Luiz Costa. Caderno Ideias Livros in:
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 07/12/1996. nº 532. p. 7
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