SUBIR AO MURAL[1]
Marco Aurélio de Souza[2]
1. É sempre arriscado comentar a grande
poesia, quer dizer, a poesia que cumula recursos sonoros e semânticos com a
precisão de pensamento – que poesia sem pensamento não pode ser grande nem boa,
e o pensamento parece estar sempre em falta –, que forja imagens improváveis
mediante o desvio incessante da obviedade, é sempre um risco comentar tal
poesia: afinal, que pode um comentário dizer sem entregar a imaturidade do
leitor? E o leitor de boa poesia, vale dizer, jamais está maduro.
2. A poesia de Ronald Augusto é destas
que, por sua qualidade excepcional, intimidam o leitor desavisado, causando
neste, ao final de cada poema, um momento de sincera reflexão. Que movimentos
fez aqui este poeta? Fui capaz de acompanhá-lo? Tanto maior será o desafio para
quem, como eu, pretende o comentário despretensioso (e como dizer com
simplicidade o que excede o simples pelo capricho da linguagem?).
3. Publicado em 2017 pela Editora
Caseira, de Florianópolis, Subir ao mural é um livro artesanal gestado com
apuro visual e gráfico. Trata-se de um livro curto, de poucos poemas, mas que
deve ser sorvido lentamente, pela densidade dos textos.
4. Sua paginação não é numerada e muitos
dos poemas não possuem títulos – à leitura do livro, estes elementos ajudam a
instaurar um universo poético que absorve inteiramente o leitor, extasiado pela
musicalidade dos versos e pelo rigor de sua expressão.
5. O conjunto dos poemas não é marcado
por alguma unidade temática ou formal. Em todos eles, porém, a riqueza de
vocabulário contribui para a construção da complexidade rítmica que o poeta
alcança sem descuidar de uma aparente naturalidade.
6. Quer dizer, à revelia do seu
preciosismo de linguagem (aqui entendido como uma qualidade, e não como
demérito), nenhum dos poemas soa falso ou bacharelesco. Em todos eles, o leitor
é tomado pelo bafo da tarde de sua poesia, certa fragrância ou frescor que
engrandece o marulhar das águas e das ruas (ver poema no primeiro comentário).
7. O livro do poeta gaúcho se divide
entre poemas curtos, em que uma paisagem de litoral alimenta versos de sabor
intimista, e outros mais longos, agudos, de elaborada crítica. O prazer da
leitura atravessa a ambos os conjuntos, uma vez que, em Subir ao mural, não há
peça que não contemple algum achado poético.
8. O feito impressiona por destoar da
moeda corrente no meio editorial de poesia: o mais das vezes, um livro é
composto por reduzido número de acertos, acompanhado de generosas fatias de
gordura. Aqui, admite-se o excesso somente num sentido inverso.
9. Por ser das mais exigentes, a poesia
de Ronald Augusto também exige muito de seu leitor, que não encontrará nela o
subterfúgio das facilidades sentimentais ou ideológicas. Bem compreendido, não
é que sentimento e ideologia aí estejam ausentes, mas que sua elaboração formal
despista qualquer oportunismo em seu discurso.
10. Como se vê, trata-se de um poeta
fiado por sua longa trajetória, cujas marcas são sentidas por toda parte de sua
poesia, feito fossem as pegadas de um veranista que passeia sob a “claridade
alaranjada do sol”, escarnecendo “do apetite de tantos ventos”. Um título para
ler e reler em qualquer estação.
[1]
Texto que integra o projeto O Pulso -
decálogos sobre a poesia viva, blog onde Marco Aurélio de Souza comenta
livros de poetas contemporâneos.
[2] Marco
Aurélio de Souza é autor de Os touros de
basã (2019), Kotter editorial.
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