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Mistificação e cumplicidade




Mistificação e cumplicidade
Ronald Augusto[1]

Em geral a arte é um espaço propício à mistificação. Ao senso comum a figura do artista serve tanto como alvo de desdém, quanto de adoração. Os artistas provocam um sentimento de inveja em muitas pessoas porque fazem o que gostam, isto é, são sujeitos livres. Não estariam presos a nenhum tipo de convenção. O poeta é um fingidor, mas é incitado a desnudar o rei (dizer a verdade doa a quem doer), sua imaginação sem fios às vezes é causa de censura, às vezes é motivo de admiração. Artistas e máscaras se dão muito bem, desde sempre.
Acontece que em alguns momentos essas licenças concedidas ao artista produzem realidades e situações que servem apenas para deprimir a relevância da própria arte. O que me interessa discutir aqui é o problema da mistificação e a tolerância de que se beneficia especificamente no território da literatura (poesia, prosa...).
Quem acompanha minhas intervenções sabe que não passo pano para nenhum tipo de estelionato estético, nem para nenhum tipo de discurso que vise a seduzir leitores sobre a suposta grandiosidade da atividade da poesia. Ainda que muitos achem impertinente essa posição, o fato é que a rede dos escritores e poetas está cheia desses tipos enganadores e mistificadores. Portanto, alguém tem que fazer o trabalho duro e abrir o jogo; dar publicidade a essas relações corruptoras que decorrem do silêncio, da indiferença ou mesmo de certa fraternidade com os promotores dessas imposturas poéticas.
Já ouvi que é melhor dar atenção aos bons escritores do que perder tempo com galinha morta, ou que esses canastrões na verdade são meio doidos, que seriam uns zés-ninguéns, picaretas etc. Contudo, devo discordar desses argumentos evocando um caso do continente do Rio Grande, que indica que a mistificação e a desonestidade intelectual, quando bem reiteradas por seus maiores interessados e irrigadas pela leniência do meio, se revelam destrutivas para todos os que se importam direta ou indiretamente com a existência séria de um campo literário.
Para os pampícolas (habitantes do pampa) basta citar o nome do poeta Luiz de Miranda que todos já sabem onde esse arrazoado vai dar. Miranda é um poeta rigorosamente normal, mediano, não escreveu até agora nada que o coloque, por exemplo, em relação com João Cabral de Melo Neto – embora, não faz muito, um seu seguidor e devoto se aplicou em medir o tamanho dos dois e concluiu que o gaúcho é maior do que o pernambucano –, Luiz de Miranda não escreveu nada que supere um poeta como Oliveira Silveira, gaúcho que nem ele, porém com uma linguagem e temas mais necessários. Entretanto, Luiz de Miranda sofre de um delírio desmedido de grandeza. Ele diz que um é poeta maior do que Neruda (a escolha de comparação não é, cá entre nós, das mais felizes) porque quantitativamente seus versos preenchem mais páginas do que os do chileno, que foi, diga-se de passagem, agraciado com um Nobel. Luiz de Miranda gesticula aos quatro ventos o número recorde que atingiu do seguinte modo, afirma que é “autor da obra poética mais extensa do mundo, com 3432 páginas contabilizadas (seguido por Pablo Neruda, 2.080 páginas; Ezra Pound, 837 páginas)”. Da quantidade se segue a conclusão de que ele não é apenas o maior, mas também o melhor poeta do mundo.
É evidente que toda essa narrativa delirante há tempos tem servido de motivo para boas piadas e boas gargalhadas em conversas informais quando alguns poetas e prosadores se reúnem para beber e beliscar petiscos em botecos da pequena Porto Alegre. Por outro lado, publicamente ninguém se manifesta a respeito, pelo contrário, o silêncio parece indicar cumplicidade[2]. Pelo fato da pretensão de Luiz de Miranda ser tão bizarra e totalmente fora de medida – afinal, sua poesia não enseja toda essa esperança de um reconhecimento lacrador – muitos preferem dar de ombros. E deixam estar. Vale tão-só pela anedota. Aí está o erro.
O poeta aspirante ao Nobel tem uma pequena, mas significativa rede de proteção e influência. Amigos políticos, jornalistas, editores de suplementos de literatura, acadêmicos e, claro, outros poetas que o admiram ou se compadecem de sua carência de atenção formam essa pareceria. Essa bolha acrítica de acolhimento e de amparo ao poeta que, de resto, o mantém atuante e justificado eu seu intento infantil de dominar o mundo, produz uma distorção enorme nos processos de estímulo e de prestigiamento dos envolvidos com as coisas da literatura. O que poderia resultar em mero ridículo se transforma em algo preocupante. Graças tanto ao continuado trabalho de convencimento do poeta e seus escudeiros, quanto à ajuda que o meio acaba conferindo ao pretendente sempre que se mostra indiferente às suas fantasias, nos deparamos com algo absurdo: no ano de 2013 a PUC-RS endossa e indica a candidatura de Luiz de Miranda ao Prêmio Nobel de Literatura.
Até onde sei essa Universidade se apresenta como uma instituição séria. Porém, é uma pena que seus responsáveis tenham se deixado envolver por esse conjunto de situações que promovem a tolerância com a mistificação, com o compadrio, com o sentimentalismo e com esse tipo de leniência que franze a testa quando alguém defende a crítica como uma forma de parrhesía[3], isto é, o falar franco e sem rodeios relativamente às questões que importam para o diálogo público das ideias. Deram corda a um processo farsesco. Um dispêndio de cuidado e prestigiamento imerecidos. Perde o conjunto da produção poética diante de um panorama cultural em que instituições que deveriam marcar presença prestigiando a diversidade decidem eleger um indivíduo do grupo para beneficiar.
Não se pode transigir com nenhum tipo de trapaça. As que, à primeira vista, são inofensivas, produzem as piores consequências. Interagir com um poeta medíocre não chega a ser um problema, a não ser, obviamente, que ele tente vender-se a si mesmo como o maior poeta de que agora se tem notícia e quase convença a alguns grupos de que isso é a mais clara verdade.



[1] Ronald Augusto é poeta, letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/

[2] Façamos justiça à coragem da poeta Denise Freitas que rompeu a cumplicidade provinciana relativamente ao caso escrevendo o artigo “O maior poeta do mundo e sua poesia de menor grandeza” (2014) em que coloca Luiz de Miranda em seu lugar, isto é, o lugar de um poeta que não apresenta nenhuma qualidade destacável, pois se trata de um poeta menor. Link para o texto: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2014/04/o-maior-poeta-do-mundo-e-sua-poesia-de-menor-grandeza-por-denise-freitas/

[3] O conceito de parrhesía aparece em três cursos de Foucault, A Hermenêutica do Sujeito; O governo de si e dos outros e A coragem da Verdade (circa 1980). Foucault o define como o falar franco ou a libertas, e que se constitui como uma das técnicas importantes do cuidado de si na Antiguidade em vista de realizar atos de coragem ética.

Comentários

Gosme Gósmico disse…
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