Ninguém me perguntou
Ronald Augusto[1]
Há muitos anos, numa
galáxia distante, participei de um seminário da literatura que reuniu muitos
escritores negros brasileiros e um outro tanto de escritores africanos de
expressão portuguesa (assim se dizia). Não obstante a promessa de vários
interesses em comum, algo estranho aconteceu. Os angolanos e moçambicanos não
aceitavam muito bem a noção de literatura negra que à época defendíamos. Eles
vinham de um contexto de lutas de libertação que exigia unificação em torno da
conquista de sua independência em relação à Portugal. Aparentemente nossas
lutas eram distintas.
Estou rememorando isso
com o intuito de explicar que essas experiências escriturais não formam uma mesma
massa indistinta. Porque às vezes as
literaturas africanas (os autores e as obras que as representam) são lidas como
discursos que se relacionariam naturalmente com os textos de autores negros do
Brasil e outras diásporas negras.
Não obstante o desejo
de aproximação, que talvez fosse proveitoso, há diferenças e interesses
específicos de um lado e de outro. As literaturas africanas e as Áfricas ainda
não cabem direito em nossos discursos bem intencionados. Por exemplo, quando
leio nomes como Mia Couto e Chimamanda Ngozi Adichie, ambos abrigados sob o pórtico
de entrada de uma Literatura Africana – como se desde sempre estivessem rentes
um do outro –, constato que o conceito é muito mais complexo ou menos linear do
que supõe o oportunista mercado livreiro-editorial.
*
Se existe de fato uma
tensão entre verso medido e verso livre, essa tensão é apenas a derivação de
uma dinâmica mais remota e tão antiga quanto a própria poesia e que vem a ser o
ir e vir entre o “capricho e o relaxo”. No caso, o capricho materializado como
clichê para verso medido e o relaxo materializado como clichê para verso livre.
Duas perguntas que eu faria a propósito do assunto: (1) como simular o relaxo
no verso medido (cite um poeta/poema como exemplo)?; e (2) como simular o
capricho no verso livre (cite um poema/poeta como exemplo)?
Parodiando uma
afirmação que Francois Truffaut – em seu filme Beijos proibidos – pôs na boca de um personagem, eu diria que “As
formas fixas são como o teatro: um maravilhoso anacronismo”.
Onde digo “as formas
fixas”, Truffaut diz “o exército”. Por fim, a relação não é espúria, afinal, um
poema rigorosamente metrificado apresenta sequências de fileiras de versos em
simétrica ordem unida. Um glorioso marche-marche.
Daqui para frente
prometo atacar apenas poetas bem mortos, mas bem mortos mesmo. Tão mortos que,
espero, sejam desprovidos de seguidores. Teimosos seguidores papa-defuntos. Que
os poetas vivos sejam entregues às redes sociais.
Um velho amigo me disse
uma vez que um covarde vivo está para um poeta, assim como um herói morto está
para um sonetista juramentado.
*
Haddad no Roda Viva. Li postagens em tom de
reclamação porque o Haddad não se manifestou de maneira mais firme e dura
diante do atual quadro político e social. Esses críticos querem colher peras ao
olmo. Aviso que não pretendo fazer a defesa do Haddad, ele é maior de idade e
pode fazer isso melhor do que qualquer um. Só acho engraçado esse modelo
justinho que políticos de esquerda devem vestir, isto é, têm que trincar os
dentes, mostrar o punho cerrado, imitar olho de águia e lacrar, virando ao
avesso, o eventual interlocutor. O
Haddad não é o Brizola, não é o Lula, não é a Luciana Genro. Ele não é pior nem
melhor por causa disso.
*
Imagine, caro leitor,
se Zumbi, um dos líderes da República de Palmares, fosse o responsável pelo
genocídio de milhares de brancos e graças a esse fato fosse guindado a herói.
Imaginou? O que os movimentos brancos diriam se na geografia de uma cidadezinha
qualquer um dos seus espaços fosse batizado com o nome “Largo Zumbi dos
Palmares”? Me parece que transitar por esse lugar seria um insulto permanente ao
povo branco e sua memória. Mas como eles ainda assim seriam dotados de fleuma e
erudição, tudo seria questionado dentro dos padrões da mais elevada civilidade,
afinal, também seria de sua natureza o domínio das emoções. A preservação da
história e o respeito à dissidência prevaleceriam para o bem de todos.
*
O episódio da live racista (e assim pode ser
qualificada porque todos os brancos ali presentes acharam graça na fala sincera
da atriz a ponto de não ligaram a mínima para a única pessoa negra do encontro,
como se ela fosse invisível, porque brancos dizem essas coisas como uma espécie
de sinal de inteligência que, segundo eles, os coloca acima de binarismos e de
questões menores, porque basta pensar um pouco que logo iremos concordar que
sempre estiveram certos, mesmo diante de sua elegante e diferenciada crueldade
autocentrada), continuando, o episódio da live
racista do cinema branco gaúcho é um exemplo inatacável daquela máxima segundo
a qual tudo é uma questão de saber se você é um racista de esquerda ou de
direita.
Representantes de
sangue europeu da esquerda esclarecida portoalegrense, responsáveis por peças áudio-visuais
de muitas campanhas do PT em pleitos de nível municipal e estadual; todos
sorridentes e solícitos àquela confissão asquerosa, confissão de branco orgulhoso
de seus privilégios, e indiferente aos danos que tais privilégios causam.
Por outro lado, uma
coisa que me deixa tranquilão é que nunca tive rabo preso com essa gente. Estou
na brisa e posso esculachar geral esses supremacistas gaúchos à paisana.
*
Acompanho Dave Chapelle,
que aqui faz as vezes de relator: jamais, em hipótese alguma, entre em uma
disputa para decidir quem sofre mais com o preconceito, com o racismo e a
violência contra os direitos civis, quem seria o verdadeiro campeão enquanto
vítima desses horrores. Porque alguém se erguerá ao término de uma discussão
infinita dizendo com o dedo apontado para cima: os egípcios escravizaram os
judeus!
[1] Ronald Augusto é poeta, letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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