[esse texto é a apresentação da poeta Eliane Marques ao meu livro, que pode ser encomendado em:
http://www.editorafiguradelinguagem.com/pd-71d4a6-o-leitor-desobediente.html ]
O leitor desobediente
Eliane
Marques[1]
Se a morenice de Eurídice rende versos a Orfeu, e a palidez (morena) de Eulália inspira versos em Máximo, a inquietude transnegreira (e radical) de Ronald Augusto com o alinhamento pó de arroz ao estado de “sempre coisas” por parte da produção poética e crítica contemporânea, lhe permite O Leitor Desobediente, com tudo o que os ensaios integrantes deste livro apresentam de desvios relativamente aos consensos sobre o significado das marcas de barra nos pés da camponesa.
Se, por outro lado, e apenas pelo gosto da anáfora, se, assim como aquela estudante alemã citada pelo autor em “Transnegressão”, o leitor obediente quiser encontrar o crítico negro ou a negridão do crítico entre estas páginas é provável que se desiluda tanto quanto a moça loira, pois aqui Ronald Augusto afirma que o negro está lá onde ele não é pensado e, se de algum modo esse pensamento (e qualquer pensamento) for se tornando coisa, ele o contorna e reafirma a sua provisoriedade, pois, considera em suas análises, antes de tudo e principalmente, aquilo que é específico da linguagem poética.
No primeiro ensaio de O Leitor Desobediente, o crítico já anuncia que lhe interessa menos reproduzir o cômodo beija-mão a um modelo que sempre aprendemos a apreciar do que lhe prestar o respeito crítico da análise. Pois bem, essa afirmação se expande aos demais ensaios da obra não como uma vela de navio que dependerá dos ventos para ser hasteada, mas como uma estruturante do seu trabalho que se apresenta num movimento contrário e refratário ao auto elogio das confrarias e às fórmulas e frases prontas próprias de uma sociedade que, em geral, as repete de ouvidos vendados (ou vendidos) tanto quanto reproduz mercados e mercadorias.
Nesse sentido, embora não articule os remos exatamente na direção em que vai a voz de comando, Ronald Augusto sabe que, como um contra-pensador da poesia, ocupa certo lugar na canoa,entre os pescadores de omeros, ou no trirreme,entre os remeiros de algum odisseu. A partir desse sabor, que reconhece mais equívoco do que certeiro, pois ciente da desordem instaurada na e pela linguagem, produz sua crítica mais de areia movediça do que de cercas de arame farpado.
Porque a senda não foi dada ou pré-datada e não é interesse do crítico assentar-se sobre os significantes já plasmados, Ronald Augusto constrói uma bifurcação para se debruçar sobre a peça “Orfeu da Conceição”, com o distanciamento que apenas o tempo (ou a morte) permitiria,e aí assinalar, com o olho grande de ciclope,as duas tragédias que, a seu “ver”, a constituem. Num dos ramos da bifurcação,ele mira a peça sob o prisma da composição; noutra, sob o prisma das suas tensões semânticas.No ensaio complementar à tragédia não negra, chamado “Os versos fraturados de Orfeu da Conceição”, o crítico dirige seu trabalho de oitiva à métrica e à versificação da obra.
Ainda sobre o primeiro ensaio, como se estivesse trabalhando com as duas cabaças vazias de Exu, o crítico não deixa escapar que, se a fatalidade integra a ação do herói (composição), também não é estranha ao trabalho do poeta de “Orfeu da Conceição” (tensões semânticas), pois na sua tentativa de apreender os signos referidos à cultura afro-brasileira, ele produziria obra tributária das convenções da ideologia dominante, o que, observa o crítico,de modo diverso do esperado por Vinícius de Moraes,seria superado apenas mais tarde, em seu cancioneiro.
Em “A tacanha intransigência de Sergio Miceli com as vanguardas”, o crítico examina o livro Vanguardas em retrocesso, do nominado sociólogo e historiador.Desobediente “como só ele”, Ronald Augusto não se mantém no quadrado do texto por onde correm os remos, pois sua análise destampa o categórico da sociologia ou da história sob o qual descansa Miceli e se articula com os conceitos, ainda que não dados, de obra de arte ou de modelagem estética para, no mínimo,questionar os achados micélios.
Desconfio, no entanto, que o crítico não seja sincero quando diz se inquietar “apenas um pouco” com o fato de a abordagem de Miceli não comportar a virtude do precário, vez que o questionamento à posição teórica tendente a encerrar a produção artística num labirinto onde será devorada pelo minotauro aparece em mais de um dos ensaios reunidos no livro e mesmo se de forma às vezes implícita é disparadora dos textos que fazem do seu autor um desobediente radical (ou seria um desobediente racial?).
No ensaio “Transnegressão” Ronald Augusto não procura e nem acha negro
algum (pelo menos não o negro com o seu sinhô), porque, como me referi antes,
esse tal negro, com os seus acessórios e assessores (os fios de Ariadne atuando
em direção perversa) que lhe vão mostrando a trilhado labirinto onde se darão
de cara com a negridão, não está lá ou aí onde é esperado. Talvez o negro, em
suas aparecenças, se dê a desconhecer em Machado de Assis, em Cruz e Sousa, em
Arnaldo Xavier, em Oliveira Silveira, entre outros, quando em “momentos
transnegressores”, conforme alcunha Ronald Augusto a partir de seu
ancestro AX, subvertem sentidos
socialmente recalcados e, inclusive, o esperado deles no campo literário, sem
pedir licença a ninguém.
Giba Giba, assim também está no Orum, sem pedir licença a ninguém, sem
beijar a mão do senhor, conforme o crítico o concebe no belo “Oriki para Giba
Giba”, em que assinala, entre outros, que um oriki é uma narrativa de
atributos, ou seja, ainda que dedicado a alguém, é pura linguagem intensificada,
sem lá muitas (ou poucas) explicações do que venha a ser.
O interesse por aquilo que quer escapar à ordem da explicação, do significado último, aparece também no ensaio “Walter Franco, dreaming Ou não”, em que,ao refletir sobre o álbum “Ou não” (1973) do músico, Ronald Augusto relaciona o seu fazer (o de Walter Franco) com o do artista visual Arthur Bispo do Rosário a partir de uma passagem do documentário “A história do Jazz” (de Ken Burns), em que Duke Ellington tenta explicar a um entrevistador que sua arte é mais da ordem do sonho, e portanto da linguagem, ainda que seja sem palavras, do que da coisa.
Por fim, em “Flores do Mal: Takes Parisienses”, Ronald Augusto assere que Baudelaire sonha o mundo a seu modo, nos transes da linguagem; já no ensaio “O continuísmo moreno do bigode de Leminski”, o crítico observa um movimento em sentido contrário desse poeta que ainda não morreu, pois, talvez não sonhasse o mundo a seu modo, mas almejasse “a plenitude expressiva da poesia projetada sobre o mundo”.
Nessa encruzilhada de textos que se articulam entre cinema, teatro, música, literatura, filosofia, não apenas como objetos de análise, mas como formas de articulação de um pensamento que é linguagem e que salta de um significante a outro sem se deter em nenhum, Ronald Augusto, esse crítico desobediente e transnegreiro, nos diz qual é a diferença entre um manto que alguém usa sobre os ombros no inverno para se proteger do frio e os mantos feitos por Arthur Bispo do Rosário, por exemplo, sem ter de nos dizer absolutamente nada sobre os mantos ou sobre o inverno. A leitura do livro não vale por isso, vale por muito mais.
Daalu Ronald!
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