Oficinas literárias para quem?
Ronald Augusto
Começo essa análise apresentando um conjunto de imagens relativas a um tipo de prática hoje bastante comum na economia do sistema literário. Tal prática, de caráter pretensamente formativo, já que objetiva preparar o interessado tanto para o artesanato da escrita literária propriamente dita, como para as demandas do mercado livreiro-editorial, é conhecida como oficina de criação literária ou oficina de escrita criativa. Adianto que todas as imagens representam por metonímia – em sua redundância infelizmente cotidiana – uma quantidade expressiva de materiais de divulgação de pequenos empreendimentos empresariais ou autônomos voltados à capacitação de pessoas dispostas a conquistar lugar e algum reconhecimento na área da literatura.
Seguem as imagens.
É preciso dizer que optei por selecionar apenas imagens em que houvesse a figuração ou a presença de pessoas, modelos, partes do corpo de modelos etc, dentro do quadro. Descartei imagens (poucas na verdade) cujo design fosse abstrato ou que indicasse uma preocupação mais com as formas ou com o espaço gráfico da peça visual. No geral as imagens mostram pessoas ou sujeitos em relação com a atividade da escrita para acentuar a ideia (meio clichê) de que escrever, não obstante a cota que deve ser dada à razão, mexe principalmente com emoções e sentimentos. Para tornar mais eloquente esse clima demasiadamente humano e sensível que apreciamos associar à atividade da literatura, a cenografia das imagens evoca majoritariamente uma ambientação analógica ou natural, isto é, podemos ver a mesa rústica de madeira, a xícara de café, o caderno, a folha de papel, a caneta ou o lápis, a máquina de escrever (metáfora incontornável da ferramenta do escritor ou, por que não, de sua alma) e, como coadjuvante, surge aqui e ali o notebook, dando a impressão de que aguarda uma oportunidade para mostrar sua utilidade, não obstante a aparente oposição com esse ambiente pré-digital.
As imagens compõem, no conjunto que se reifica, um quadro acolhedor no qual esses artefatos de convencimento se constituem em frames de narrativas algo romanescas a respeito de quem está justificado para colocar em movimento a atividade da escrita. Isto é, a caneta, a máquina de escrever, o caderno são personagens ou dispositivos ficcionais que servem para vivificar a história dessa figura humana que, nas imagens, se multiplica contida numa representação invariante, a saber, o simulacro de uma pessoa branca, amante das letras, que se multiplica ou é replicada em indivíduos trajando roupas novas, casuais, e de unhas sempre bem feitas. Nem sempre vemos o rosto do figurante, mas seu corpo se projeta em nossa memória invisivelmente branco, tal como sua pele desracializada e universal, a ponto de dispensar a necessidade do buscar um figurante não-branco para a cena a ser fotografada. É como se a figura humana branca – a descartar de saída qualquer chance à figuração de, por exemplo, não-loiros – completasse à perfeição o quadro ou o circuito das coisas e das ideias atinentes ao literário ou à “língua literária” (Saussure). A figura de uma pessoa negra, ou mesmo de uma simples mão negra empunhando um livro ou uma prosaica lapiseira, bastaria para entrar em desacordo com o imaginário do senso comum ou com o que quer que se permita declarar a respeito do campo da literatura.
Essas imagens, na perspectiva da teoria da Análise de Discurso, são produzidas no âmbito de uma formação discursiva? Considerando a definição de Pêcheux segundo a qual a formação discursiva, em dada conjuntura, é determinada pelo estado de luta de classes – ou no nosso caso, p. ex., pelas condições da assimetria racial –, é possível identificar, portanto, no conjunto e na regularidade dessas imagens o que pode e deve ser dito, ou o que/quem pode e deve ser prestigiado através de variados mecanismos de visibilidade de que se beneficiam uns em prejuízo de outros.
De outra parte, posso considerar que meu investimento de análise parte de um tipo de formação discursiva que se apoia na concepção de que o racismo é uma construção sócio-cultural e política cujo lastro histórico, desde o passado até o presente, envolve o sequestro e o genocídio de africanos e daqueles que vieram a se constituir como a diáspora negra. Essas práticas de poder são determinadoras da ocupação dos lugares de estima e de não-estima distribuídos entre sujeitos não-negros e negros. O racismo estrutural normaliza o endereço de nossa estima ao sujeito não-negro.
Racismo estrutural: o conceito aqui se atualiza e se configura como uma formação discursiva através da qual meu empenho interpretativo, traduzido em sujeito do discurso, me conduz a uma desidentificação com o negacionismo do racismo brasileiro que, até há poucas décadas, era saudado pela transparência do véu de alguns aparelhos ideológicos do estado como índice de democracia racial, no sentido em que a atitude de não se pronunciar sobre o trauma seria uma maneira de superá-lo de forma sobranceira. Com absoluta coerência o imaginário das oficinas de criação literária reforça as duas imposturas, ou seja, por um lado, a noção de democracia racial não é contemplada – porque pressupõe diversidade, coisa que não se constata nas recorrentes imagens – e, por outro lado, a negação do racismo é perpetuada de forma aparentemente inadvertida. O que está em jogo é essa cerrada trama de formações discursivas, por meio das quais a forma-sujeito da branquitude constrange esse ou aquele sujeito de discurso a um espaço restrito de liberdade, a tal ponto que sua condição de animal ideológico parece assumir um estatuto de condenação, pois ele se mantém inelutavelmente identificado com o mesmo domínio epistemológico. Os transes da ideologia se revelam através desses verdadeiros retratos de classe onde o sujeito branco é entronizado como o protagonista e depositário dos mecanismos de produção e recepção dos bens literários.
As imagens das oficinas de literatura, na medida em que dispensam o poder de legenda – ou de imagem conceitual – que o signo linguístico tem sobre o mundo, constituem a faceta da formação discursiva relativa ao racismo estrutural que presentifica sua eficácia por meio da enunciação visual, conhecida por ser uma forma expressiva que quer dizer tantas coisas e, no entanto, não diz. O racismo recreativo, ao oscilar entre o riso e o mito da tolerância, opera o apagamento do sujeito negro a partir da prática regular da ofensa que não tem a intenção de ofender.
O sistema literário se encerra entre os muros da lógica meritocrática. As imagens apresentadas traduzem um aspecto importante desse discurso meritocrático, a saber, o simulacro do leitor branco, amásio da cultura e das letras, que geralmente aparece solitário no quadro publicitário: ele, o papel e o lápis como os únicos elementos necessários para a escrita de um bom texto. No entanto, segundo Jorge Luis Borges, a literatura (e na base dela está a língua) é um jogo de citações. Isto é, escrever pressupõe não só a criação, mas principalmente variadas formas de expropriações a partir dessa ou daquela tradição. Vale dizer, tanto as palavras, quanto o acervo de textos pertencem à coletividade. A intervenção de uma voz individual nesse contínuo literário na verdade faz coro com outras vozes.
A noção de qualidade literária, predicado pretensamente essencial (como se pudesse valer para todas as situações possíveis) ao poema, ao romance, ao conto etc, impõe ao interessado em participar da sala de estar dos grandes escritores sua sujeição à máxima que diz: “quem tem competência que se estabeleça”. Esse tipo de enunciado apresenta o campo literário como uma coisa infensa às contradições, desigualdades e tensões sócio-políticas. Uma espécie de limbo (nobre castelo) no interior do inferno das assimetrias raciais emolduradas pela sociedade.
Entretanto, uma tradição revisada e recuperada de obras e textos literários de escritores negros e de escritoras negras, que vem desde o século XVIII – considerando exclusivamente o caso brasileiro –, passando pelo XIX e chegando até aqui, sustenta também a emergência de um discurso literário negro que, a partir da divergência e da dissonância, desvela tanto o conceito como a prática da Literatura Brasileira (com as maiúsculas de praxe) como uma instituição que, apesar de abrigar uma sinédoque de nação, se aplica em expurgar de si o contributo negro e suas formas epistêmicas.
É isto o que não se vislumbra e também o que se vislumbra nas imagens das oficinas de escrita criativa selecionadas para o presente texto.
O escritor estadunidense, negro, James Baldwin, no ensaio “O romance de protesto de todos”[1], ao analisar a obra A cabana do pai Tomás, trás para o centro de sua crítica, na perspectiva de entender a razão do sucesso desse velho romance, a contribuição da sociedade americana e o racismo que lhe é congenial. Baldwin considera A cabana do pai Tomás um romance muito ruim enquanto gênero literário, além do que a narrativa apresenta personagens negros repletos de estereótipos. No entanto, em sua estrutura íntima o romance reproduz o triunfo da sociedade americana, isto é, representa, segundo James Baldwin, a capacidade dessa sociedade de “convencer as pessoas a quem ela atribui um status de inferior de que essa inferioridade é real; ela tem a força e as armas que lhe permitem transformar suas afirmações em fatos...”.
Em algum grau minha lembrança do ensaio de Baldwin se conecta com a sequência de imagens relativa às oficinas de literatura, onde o mito da branquitude como que se apossa do literário por um direito natural. Tal como em A cabana do pai Tomás, esses cards publicitários – nos quais negros aparecem apenas in absentia – reproduzem um discurso marcado por imposturas e estereótipos: o suposto inferior está prefigurado em sua desaparição aparentemente inofensiva.
Entretanto, como escreve James Baldwin, é isso que mantém a sociedade (a ideologia) coesa: “...nós a mantemos unida com lendas, mitos, coerções, temendo que sem ela sejamos lançados naquele vazio no qual, tal como a terra antes de ser pronunciado o Verbo, estão ocultos os alicerces da sociedade.”
As imagens, as cenas, enfim, os fotogramas publicitários das oficinas literárias, discutidos nesse texto enquanto formações discursivas, compõem uma homogeneidade que subjaz a formas-sujeito atravessadas por uma discursividade da continuidade e da unicidade que justifica o modo de ser do sujeito da identidade não-negra. Trazer à superfície dos textos e discursos críticos esse insidioso imaginário da segregação racial no campo literário significa, em alguma medida, propor a possibilidade de formações discursivas vincadas de alguma heterogeneidade[2]. Uma forma-sujeito que desorganiza o quadro ao se organizar na perspectiva da diferença e da divergência, como se se tratasse de uma dialética da desidentificação e da identificação em devir transformador.
Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Letras na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) À Ipásia que o espera (2016), O leitor desobediente (2020) e Tornaviagem (2020).
[1] BALDWIN, James, 1924-87. Notas de um filho nativo. James Baldwin; tradução Paulo Henriques Brito – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
[2] INDURSKY, Freda. Unicidade, desdobramento, fragmentação: a trajetória da noção de sujeito em Análise do Discurso. In: MITTMANN, Solange; GRIGOLETTO, Evandra; CAZARIN, Ercília (Orgs.). Práticas Discursivas e identitárias. Sujeito & Língua. Porto Alegre, Nova Prova, PPG-Letras/UFRGS, 2008. (Col. Ensaios, 22).
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