O
gesto sensível do mundo: o que não está no mapa
Ronald
Augusto[1]
Lançado em 2017, Percurso onde não há, livro de Denise
Freitas, foi um dos finalistas do Açorianos de Literatura na categoria poesia.
Naquele ano, João & Maria, dúplice
coroa de sonetos, de Leonardo Antunes, mereceu o troféu de vencedor. Por uma feliz conjugação de acontecimentos, a
poeta, agora com um novo conjunto de poemas intitulado O gesto sensível do mundo – prefaciado, inclusive, pelo mesmo
Leonardo Antunes –, foi quem recebeu o Açorianos pela autoria do melhor livro
de poesia lançado no RS em 2021. Dois volumes magros reunindo cada um deles
feixes de poemas de um intrigante lirismo à beira do intransitivo. Mas o
recente conjunto se difere um pouco do anterior por apresentar formas de
linguagem e andamentos mais afeiçoados a uma determinação pela discursividade.
Um pervagar narrativo também assoma à superfície dos versos. As epígrafes
extraídas da Divina Comédia e do Grande sertão: veredas, escolhidas pela
poeta como divisas paratextuais à fruição da obra, talvez indiquem essa ida
inacabada do alusivo em direção à narração. Consideremos, como exemplo, os
primeiros versos de “Noturno”.
Houve
uma noite.
Uma
noite somente e através dela
toda
vontade desse mau destino
arrastando
sempre perda e ossos.
Apenas
essa noite raríssima
suspendia
os efeitos do fim
porque
nenhum sinal,
nenhuma
agitação.
Entretanto, como tudo
na poesia de Denise Freitas assume um caráter impreciso, e o que nela é enunciado
se submete ao encanto pela elisão, essa outra dicção não joga por terra o que
entendo ser a obscuridade desafiadora
constitutiva do seu percurso escritural que, em boa medida, ainda concentra a
chance de singularizá-lo quando confrontado, por exemplo, com o panorama da
produção literária contemporânea de diferentes poetas e escritoras.
É necessário lembrar
que essa menção ao recorte de gênero não entra na discussão nos termos de uma
vertente meramente reativa aos modelos literários e sociais nos quais as
mulheres são representadas de forma subalterna. Arrisco dizer que mesmo as
escritoras em justo litígio com a ideologia do machismo, podem ter seus
escritos lidos a partir de outros pontos de vista, afinal, o texto literário é
uma estrutura proliferante de signos. Não tenho dúvida de que a poeta Denise
Freitas se sente implicada em uma série de tensões poéticas e éticas
concernentes ao seu tempo.
No
fim da tarde, meninas trocam entre si alguns enfeites.
Como
quem fala histórias de assombro, ensinam umas às outras
truques
de evitar estupros, e o que há nas cadeias, e nas bocas.
Por outro lado, graças
à maneira como essas tensões são traduzidas na fatura compositiva do poema,
isto é, se elas se reduzem a um decalque do real, ou se seus significados e
sinestesias perturbam a própria forma do real, então podemos pensar estratégias
de leitura adequadas à estrutura desse poema. Em outras palavras, a voz de
Denise Freitas, por parecer menos elíptica do que discursiva em O gesto sensível do mundo, não me leva a
afirmar, contudo, que seus poemas se tornaram mais atenciosos às expectativas
dessa ou daquela recepção.
Se em Percurso onde não há a poeta palmilha ou
tateia as bordas do abismo dos sentidos, concedendo apenas rastros e generosas
lacunas à leitura, em O gesto sensível do
mundo o poema se expande textual e semanticamente no esforço de
transfigurar outras terras e geografias vividas e imaginadas, alheias e próprias.
Não obstante o título do seu mais novo livro, que sugere o acontecimento de uma
fissura através da qual Denise Freitas se vê habitando “o mundo/ nos olhos dos
estrangeiros”, seria despropositado argumentar que a ocasional suspensão da
elipse em sua linguagem aponta para uma retórica drummondiana, de maneira a
conduzir a poeta à reiteração do imperativo segundo o qual seus ombros deveriam
suportar o mundo, ou sabe-se lá que espécie de pertencimento
territorial-existencial.
De
repente, tão semelhante ao resto,
feito
astro sempre torno à mesma via,
a
promessa do alívio, ainda
que
impronunciável e sem força alguma.
Mais do que um efetivo
compromisso com os espaços dramáticos do mundo humano, Denise manuseia
sensivelmente as cartas geográficas, as metáforas e a plasticidade dos conceitos
que, às vezes, são descartados sem mais e em obediência à escassez de
pensamento do nosso tempo, ao rés do chão aterrador. Tudo – mundo ínfimo ou
flashes do mundo civil –, tudo, em O
gesto sensível do mundo, esbarra num tipo de cifra excogitante, numa cadência
meditativa. Observamos algo que nos parece familiar e trágico, mas isso logo
escorre por entre os nossos dedos. Buscamos algo que não se encontra mais à
mão; algo que talvez jamais estivesse à mão. Porque a poeta nos adverte que o
território ausente de todos os mapas observados é a palavra território.
[1] Ronald Augusto é poeta, letrista
e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na
mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões
Aplicadas (2004), Cair de Costas
(2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À
Ipásia que o espera (2016) e A
Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com
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