Pular para o conteúdo principal

filme: tresleituras de cavell

 




Ronald Augusto


Photograph and Screen 3

 

A imagem do mundo ou do conjunto de objetos representados em uma pintura tradicional não ultrapassa os limites da moldura. Não seria razoável perguntar pelo que há para além desses limites, isto é, se a imagem continua além do quadro, pois, de acordo com Cavell, a pintura é um mundo autossuficiente. Cavell afirma que a fotografia, por seu turno, faz outro caminho; por ser do mundo, a câmera da fotografia o recorta deixando de fora do nosso campo de visão uma porção infinita (indeterminada) da realidade. Uma fotografia é como uma peça de um quebra-cabeça, mas que jamais será montado, uma vez que “a câmera, sendo finita, corta uma porção de um campo indefinidamente maior” [The camera, being finite, crops a portion from an indefinitely larger field]. Se cada fotografia é uma peça desse virtual quebra-cabeça, então cada vez que a câmera corta determinada quantidade da realidade o quadro completo da realidade fica mais distante de ser alcançado ou de ser reconfigurado em sua integridade. Um espelho rompido cujos fragmentos jamais se unirão.

 

Já o mundo figurado nos planos do filme é um mundo exibido, isto é, trata-se de um mundo que se faz presente diante de nós, que acontece, que se apresenta diante dos nossos olhos. A percepção de que ele seria sem fronteiras (ao contrário da fotografia) ou de que as margens da tela não importam tanto, resultaria dos seus múltiplos planos? Cavell pensa sobre isso de um modo meio obscuro. A tela, onde as imagens do filme são projetadas, não é comparável a um suporte: a tela na verdade nos aparta do mundo (tal como a página do livro), ela não tem relação, por exemplo, com a metáfora de uma janela. Não é que o mundo não caberia na tela, é que, se posso me expressar assim, as imagens do cinema nos mostram um mundo inexistente ou à parte; essas imagens formam uma entidade autônoma e, ao mesmo tempo, como expectadores nos tornamos invisíveis ou implícitos como se fossemos os leitores de um livro. A tela-página como véu.

 

Audience, Actor, and Star 4

 

“O público em um teatro pode ser definido como aqueles a quem os atores estão presentes enquanto eles não estão presentes para os atores” [The audience in a theater can be defined as those to whom the actors are present while they are not present to the actors]. Essa afirmação parece, a princípio, contra intuitiva, ao menos do modo como eu a interpreto. O publico não está presente para os atores? Sempre achei que em termos performativos a consciência do ator, atualizada em seu corpo-presença, em relação à audiência importasse de forma decisiva para tudo que acontece no palco [Paul Zumthor]. Cavell teria em mente, nessa passagem, uma estética teatral mais tradicional? Mesmo concordando, para começo de conversa, que “os filmes permitem que o público seja mecanicamente ausente”, na fase de produção-composição, é óbvio que o público está virtualmente implicado, isto é, em razão da recepção da audiência e sua presença o filme, eventualmente, acaba por reagir.

 

Por exemplo, há pouco mais de 70 anos era comum que produtores de Hollywood fizessem exibições-testes de seus filmes (não sei se hoje isso ainda é praticado) visando sondar a recepção da audiência à obra e, se fosse o caso, fazer ajustes. Se não me engano em The Bad and the Beautiful (“Assim estava escrito”), direção de Vincente Minnelli, essa prática hollywoodiana é representada em algumas das sequências. Entretanto, isso não derrota a tese de que o expectador de um filme é tão invisível para as imagens em movimento que ele testemunha quanto o leitor de um romance. Por outro lado, há críticos de literatura que atenuam isso dizendo que, no segundo caso, o romancista na verdade concebe o leitor como um personagem implícito. Machado de Assis, aqui e ali, desentranha o leitor do transe romanesco e o instala na materialidade da narrativa permitindo que ele se perceba a si mesmo na atividade da leitura.

 

De qualquer modo, em um filme nenhum ser humano aparece ao vivo diante da audiência. Cavell precisa dizer isso para acrescentar que, no entanto, há algo de humano, no sentido em que algo diferente de qualquer outra coisa que conhecemos acontece quando assistimos a um filme. No teatro, o personagem vive como que uma vida autônoma em relação ao ator que o corporifica. Isso é mais ou menos razoável, afinal, uma peça de teatro é uma obra que avança no tempo experimentando sucessivas montagens, e o personagem é um ser de texto ou de ficção que recebe uma voz e um corpo relativos às necessidades do momento e do lugar. No cinema, o personagem é inseparável do ator, morrerá com ele ou com o filme. Mas isso só é verdade se o personagem do filme nasce no roteiro. A complexidade do personagem de um filme não tem fundo literário. Todos os processos que constituem um filme: roteiro, luz, direção, atuação, edição etc, enfim, todos esses fenômenos reunidos em um trabalho de composição constroem a complexidade dramática do personagem.  A força dramática viria menos do ator em si mesmo do que da conjugação expressiva desses elementos. Por exemplo, a sensação de vertigem que James Stewart deve transmitir à audiência, na sequência final de Vertigo de Alfred Hitchcock, é obtida em contraponto com um efeito de câmera que nos mostra a escadaria que leva à torre da igreja se alongando à maneira de sanfona, simulando com isso a maior profundidade do fosso à medida que o personagem ascende ao topo do campanário. A dramaticidade da cena é de caráter cinematográfico.  Coisas inanimadas, objetos do mundo, através de recursos técnicos a serviço de uma forma de narrar, são afetados-transfigurados pelo estado de ânimo do personagem-ator.

 

Types; Cycles as Genres 5

 

Cavell se impacienta com a tese de que o cinema se desenvolve a partir da exploração das possibilidades singulares e específicas do novo meio. Mas o que são essas “possibilidades singulares e específicas do novo meio”? Cavell confessa não entender o que faria de algumas propriedades “as possibilidades do novo meio”. Talvez Cavell esteja questionando a ideia de que essas possibilidades supostamente constitutivas do cinema seriam anteriores ao próprio cinema. Como se as propriedade viessem antes da coisa.

 

Cavell entende que é mais razoável dizer que alguém com o desejo de fazer um filme viu que certas formas estabelecidas dariam conta de certas propriedades do filme. Talvez não saibamos dizer o que contará como significado às possibilidades estéticas singulares e específicas de fazer cinema apenas pensando sobre a coisa de modo abstrato. Se alcancei entender o problema, Cavell propõe que é preciso pensar em filmes concretamente. Os filmes surgem e têm certas propriedades. Essas propriedades em perspectiva suportam certas formas estabelecidas que conseguem garantir ao cinema uma autonomia expressiva.

 

 

 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a

o falso problema de ugolino

A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma - aparente - scriptio plena . Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Nesse breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora, vencido pela fome, os cadáveres dos próprios filhos e netos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino com