Pular para o conteúdo principal

E mais não digo : apresentação

 



De tirar o fôlego

Guto Leite*


Olha! Difícil dizer que o leitor acabou de ler o melhor livro do Ronald Augusto... Até porque se trata de poeta excelente, que vai com firmeza do assombro lírico de À Ipásia que o espera à organização sofisticadamente profunda de Entre uma praia e outra, e crítico atento e agudo, de coerência invejável em matéria variada, para citar Crítica parcial (isso para falar só em livros dos últimos anos). Ok, se não posso dizer que é o melhor livro do Ronald, afirmo com tranquilidade que temos uma espécie de livro de síntese de uma trajetória, de uma posição, de uma acumulação, de um espírito, que faz eco, por exemplo, a obras como Itinerário de Pasárgada, com textos canônicos de Bandeira, ou Sem trama e sem final, coletânea mais recente de Tchekhov, colhidas de sua correspondência pessoal.


Com o perdão da desmedida, o livro do Ronald é mais inusitado do que esses, visto que a maior parte dos textos vem do calor da hora do debate das redes sociais, o que exige, a mais, ao menos presença de espírito (que é certa aptidão difusa que congrega inteligência, sensibilidade para o tom adequado, timing, manha etc.) e disposição para o debate em terra austera, de comentários-cartazes, mediocridade regente e, eventualmente, trolls. Para deixar ainda mais espantoso, tal como debatido nos próprios textos, a brancocracia brasileira reserva para o autor espaços determinados, de subserviência ou de autonomia relativa, que Ronald recusa desde o início, para uma posição de ataque, ora com humor, ora sem humor, mas sempre de forma cortante.


Aliás, essa disposição não cordial lembra um pouco a voltagem que comentadoras e comentadores veem na obra do Racionais, isto é, uma forma estética que não entra necessariamente no lugar do conflito, sublimando-o, mas que é ela mesma um espaço de conflito. Conflito, aliás, que tem objetivos bem claros ao longo dos excertos: contra a conivência com as manifestações variadas de racismo no Brasil e no circuito literário brasileiro, contra o tratamento leviano do trabalho poético, contra o conservadorismo e as propostas de falso progressismo, entre outros. A natureza dos textos vem da combinação de sátira e reflexão — aquela, ágil, esta, mais mediada — e vamos acompanhando esse balanço que por vezes é mais rápido que nossa própria leitura e, por outras, permite se deter em determinado tema e explorar miudamente as contradições, como no caso de Lobato, exemplarmente. Estamos falando, portanto, de textos que poderiam ser chamados de "textos de intervenção" em questões cotidianas — afinal, nas redes, os assuntos acompanham as demandas do presente — e ao mesmo tempo abrigam uma larga dimensão futura, com achados, linhas e argumentos muito interessantes sobre estética, política, filosofia etc.


Não tenho como não me referir ao olhar agudo da editora, Laís Chaffe, que pediu ao escritor a seleta, e ao olhar agudo do escritor, que soube selecionar as entradas dentre material vasto e montá-las de modo a tornar a leitura tão instigante. A leitora ou o leitor podem ter discordado deste ou daquele argumento, do tom desta ou daquela postagem, do tipo de humor em determinado assunto — felizmente os livros não permitem (ainda) reações de emojis e comentários —, mas terá de aceitar que temos um conjunto que interessa a críticos, escritores, professores e público inteligente em geral. Quem acompanha o Ronald Augusto diariamente imagina os reconhecimentos e os contratempos de sua posição sempre desperta diante da realidade. Aos leitores futuros, que este livro terá, fica a representação de uma época e um lugar por uma perspectiva lúcida e íntima da linguagem e suas velocidades. Eu poderia dizer que li este livro sem interrupções e que está de tirar o fôlego, e seria verdade, mas...


* Professor de Literatura Brasileira da UFRGS, escritor e compositor popular.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dá licença, meu branco!

Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum , e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem dest

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb