Miscigenação da forma artística
e despedida da palavra em Cair de Costas
por Guilherme Mautone
Muitos conhecem o debate travado por
Lessing no século XVIII sobre os limites entre a pintura e a poesia. O Laocoonte (1766), obra seminal do autor
alemão, exerceu enorme influência entre seus pares – entre eles Goethe, que
recebe-a com invisto entusiasmo pelo seu estatuto inegavelmente
preciso. Jamais, antes de Lessing, haviam ficado tão claras, tão distintas, as
diferenças ontológicas e as diferenças epistêmicas entre a obra pictórica e a
poética.
A primeira, inscreve-se no espaço
através de figuras e cores. A segunda, no tempo através de sons articulados.
É com essa formulação bastante óbvia
para o homem comum do século XVIII que Lessing antecede a máxima lançada
séculos mais tarde por Lacan: de que o óbvio, às vezes, precisa ser dito.
Mas serão tão evidentes assim
as formulações de Lessing? Serão, ainda hoje, possíveis?
O auge de todo racionalismo (e
não foi o classicismo artístico alemão uma espécie de racionalismo?) é um
sujeito inflado, bem compartimentado e bem mobilhado internamente por toda
sorte de quinquilharias escolásticas. Uma dedução para cada parte da alma, uma
demonstração para cada faculdade humana.
E todos conhecem a terceira
crítica kantiana – que não dedica mais de dez páginas à arte, resumindo-a a uma
questão taxonômica. Mas o sujeito, seu prazer, seu juízo, sua antropologia...
essas são, ali, questões de mais alta relevância.
O preço que pagamos, e que será
analisado longamente (necessariamente!) por pensadores como Luc Ferry e
Foucault, é uma noção fragmentária de sujeito na contemporaneidade, ainda que
os trâmites epistêmicos entre suas diversas e variegadas partes tenham sido
deduzidos transcendentalmente.
Os que se colocaram mais
sensivelmente esta questão foram, sem dúvida, os grandes artistas modernos, de
maneira que ao redor deles passará a siderar uma tarefa árdua, porque dupla.
Como rejuntar os cacos dessa noção de sujeito? E o que o fará se tornar, mais
uma vez, integrado?
Tudo começará, dirão alguns
deles, pelos sentidos. Pela porção mais equívoca, mais dada ao fracasso, mais
desacreditada e menos filosófica. À percepção não será conferido um lastro
conceitual intrínseco, como fizeram os idealistas ingleses provocando,
consequentemente, uma reação filosófica contundente de Russell e Moore com suas
teses sobre a exterioridade radical da referência semântica.
Esses artistas passarão a
pensar em formas de juntar, aquilo que Lessing, enquanto representante de um
classicismo de cepa racionalista, havia tratado de mostrar e de provar em
separado. Não seria de uma arbitrariedade vã querer ver, querer defender, teimar
tão apaixonadamente, que as artes devam estar naturalmente separadas? Juntar
tempo e espaço, cor e som, figura e palavra, significava reinvestir esforços
nessa tentativa de restituir ao sujeito – via concretude – essa fragmentação que era fortemente sentida de
maneira sugestivamente abstrata. A ironia é, desculpem-me a licença
rabelaisiana, gargantuan.
Quando Duchamp nos oferece um urinol
como objeto de arte, ainda que completamente despido de quaisquer qualidades
estéticas e de quaisquer estereótipos significativos da arte passada, ele as
dissolve com maestria ao transformá-las em narrativas artísticas,
questionamentos, historietas, listagens e reproduções protocolares que explicam
e que justificam em certo sentido a emergência dessa obra diante dos respeitáveis
senhores da Sociedade de Artistas Independentes em 1917 (da qual, é preciso
dizer, ele ironicamente fazia parte). Seu gesto, antes de ser iconoclasta,
vanguardista, é sobretudo comprometido com o desenvolvimento de uma arte que
não seja mais (só) retiniana. Mas que faça pensar, sentir diferentemente, olhar
outra vez, prestar atenção. A anátema da ‘arte da retina’ sobre a qual o readymade incide é um produto das
expectativas classicistas. Há, em Duchamp, em 1917, o estopim do gesto que
espera reintegrar a percepção humana em sua sinestesia fundamental e em sua
relação com as demais faculdades.
Os trabalhos de Léon Ferrari,
bem mais tardios, colocam-se as mesmas exigências. Passam a requerer do
contemplador passivo, retiniano no sentido geométrico, uma fluidez orgânica e
integral que só pode lhe ser devolvida por uma experiência de concreção. Quando nos oferece suas
pequenas fotos ambíguas (que já merecem atenção por se encontrarem num entre de daguerrótipos memorialistas
enquanto produtos do avanço tecnológico e
de figuras eróticas enquanto resultados de uma certa libertação sexual) onde
mulheres nuas são re-significadas com inscrições em braile, o que está em jogo
é a necessidade de olhar-tocar, ler-sentir, entender-apreciar.
Léon Ferrari, Unión libre, 2004
Também os trabalhos de Mira Schendel,
entre alfabetos enfurecidos e sinalizações de cor-e-palavra, tangenciam os
mesmos problemas. Desafiam a compostura bem arregimentada da defesa de Lessing
sobre as fronteiras entre pintura e poesia, mostrando que o nascente
olhar-sentir-compreender contemporâneo só nascerá a partir de uma miscigenação
essencial entre suportes, signos e referências. Só assim as faculdades
distintivas do homem que se especificaram ao longo da tradição filosófica
podem, outra vez, serem pensadas em ato – imiscuídas – e não só mais em rigor
conceitual. A palavra, quando riscada no suporte tradicional da pintura, espoca
e se desdobra, clivando-se em demandas por sugestão semântica e por sugestão
tonal.
Mira Schendel, Monotipia
(tríptico), aprox. 1960
Não será mais adequado avaliar estas
produções somente enquanto pintura, ou enquanto desenho, ou enquanto poesia, ou
enquanto fotografia. É preciso atribuir-lhes esse hibridismo e, como
consequência, reconhecê-lo em nós mesmos. O que mais me impressiona,
particularmente, é que além de assegurarem uma espécie de resposta aos
problemas que elenquei no início do ensaio, estes trabalhos ainda se recobrem
de um tipo muito especial de, nas palavras de Glória Ferreira, uma fortuna crítica. Ao mesmo tempo em que
assentam algo novo, que nos apontam a modos distintos de perceber, compreender,
emocionar-se; também discutem com suas sugestões poéticas o estatuto tão
diverso da própria história da arte, como se entrassem num debate frontal com
toda produção pretérita, do readymade
ao expressionismo abstrato, da pintura pré-rafaelita ao naturalismo.
O mesmo, penso, passa-se com a poesia
(será só isso? – mas, então, como chama-la?) de Ronald Augusto. Ela se insere
nesse diálogo artístico de maneira transversal, porque perpassa por tantas
‘formas’ de arte.
Ela é poesia? Sem dúvida, já que
alude e suscita imagens.
Ela é música? Sim, porque encadeia
ritmos e testa a tonalidade.
Ela é desenho? Também! É mais que
adequado dizer que ela explora o espaço da folha em branco e chama atenção para
a cor, para o traço, para a luz.
A poética – no sentido de produção
artística – expandida que encontramos germinada em cada página se constrói na
delicadeza incisiva daquilo que é gentilmente exposto para desafiar nossa
tendência tão humana, como disse Wittgenstein em O Livro Azul, de desprezar o caso concreto e partir, logo-logo, às
generalidades. Não há modelo científico que circunscreva o trabalho de Ronald.
A artesania selvagem que encontramos
em seu trabalho é, talvez, da ordem da bricolage,
conceito importante para Lévi-Strauss. Daquilo que se produz num eixo da
transversalidade das técnicas, das sugestões, que se aproveita do prazer de uma
produção que acaba incidindo na multiplicidade do horizonte artístico.
A tradição aparece em seu trabalho
como consideração, ao mesmo tempo, séria e insolente. Ronald Augusto não é um
poeta ingênuo – invoca o panteão das entidades literárias: Haroldo de Campos,
Machado, Dante. Todos se achegam, nenhum deles fica. Como ficar? Não é
possível, não quando se trata de vocalizar os próprios daimones e delirar nas suas próprias questões.
A linguagem não é mais protocolar,
não é mais um conjunto de símbolos, ela nem sempre – na poesia de Ronald – está
por um objeto, nem sempre estabelece um nexo associativo entre palavra e coisa.
Porque a sua poesia se faz nessa beira, nessa borda, testando-se em sua própria
errância ontológica (é desenho? é cor? é som? é palavra?) e rindo-se do abissal
da própria linguagem.
É impressionante quando um artista
alcança esse grau muito específico de refinamento em seu próprio trabalho. É
algo enlevante pra quem o lê, quem o
aprecia, pra quem se assombra e cai de
costas diante da sua própria radicalidade. Ela é inscrita, penso, num cenário
beckettiano, com sua abertura apoteótica e rítmica, num diminuendo, como encontramos em O
inominável:
Onde agora? Quando agora? Quem agora?
Sem me perguntar. Sem pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante,
chamar isso de ir, chamar isso de adiante. Pode ser que um dia, primeiro passo,
vai, eu tenha ficado simplesmente ali, onde, em vez de sair, segundo um velho
hábito, passar dia e noite tão longe de casa quanto possível, não era longe.
Pode ter começado assim (Samuel Beckett, O
inominável. São Paulo: Editora Globo, 2009, p. 29).
Encontro então, na página 156, de seu
Cair de Costas (2012), o seguinte – e
me espanto:
o terror
organizado da espécie
pra longe da corroça-cacareco
longe do
oloroso noticiário de margarinas
inspecionadas
longe do prazer do
parque dos signos
vai fora some nunca mais
Contudo a palavra nestes poemas,
diferentemente de Beckett, como que se despede. É aquele instante momentâneo no
qual o tempo se condensa, o espaço é o que unifica e o que agrupa, o afeto
recrudesce, os sentidos todos se misturam – na despedida, a pele crispa, os
pelos se eriçam, a pupila se dilata, a atenção se concentra, a emoção se
densifica. Não há nada em separado.
Aqui, acontece o mesmo com a palavra, com aquela noção de palavra que
pensávamos compreender... seu adeus é iminente. Ela ainda está aqui por acidente. Logo virará um som,
um barulhar distante, uma breve sugestão, um borrão ou um traço desdobrado
sobre o papel canson.
Ronald Augusto, scriptio defectiva, Cair de Costas, 2012
Porto Alegre, abril de 2015.
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