A poesia ‘acontecimento’ em Cair de costas
Por Erre Amaral
O poeta e ensaísta Cândido Rolim inicia o seu
posfácio para a coletânea de poemas Cair
de costas de Ronald Augusto, com a seguinte afirmação: “Até que enfim uma
poesia me comunica que não quer comunicar. Que sua função é outra: cair fora do
‘sistema unívoco da linguagem’ (Adorno), ‘significar a esmo’, jamais atingir
uma margem, nem o ambíguo conforto da forma. Enfim uma escritura que, após o front da linguagem, os secretos
escrutínios, funda outros desafiadores sentidos”.
Após a leitura dos desterritorializantes poemas do
Ronald, não há como não concordar com Rolim, não só com o parágrafo introdutório
de “Fissuras em Cair de costas”,
acima mencionado, mas com todo o conteúdo ensaístico de seu instigante
posfácio.
No entanto, gostaria de fazer uma outra arriscada
leitura, transversal a de Rolim, sobre a obra em questão.
Arriscada porque o chão onde pisarei é um tanto
escorregadio, posto que fragmentário e hesitante, a saber, a noção de
“acontecimento” na démarche foucaultiana.
Transversal, em razão de tentar fazer a leitura de Cair de costas aquém ou além da linguagem, elemento do qual não se
afastou totalmente Rolim em seu ensaio, pois que, ao fim e ao cabo, ele pensa
em termos de fundação de “outros desafiadores sentidos”, a despeito da
incomunicabilidade da poesia ronaldiana, preconizada na citação acima.
Para se compreender o “acontecimento” em Foucault é
necessário cotejar tal noção com a de “estrutura”. Estrutura está para aquilo que é pensável, que se expõe à racionalidade analítica, que se dá à
interpretação simbólica e sígnica, culminando numa lógica cognoscível. Já, acontecimento, diz respeito ao âmbito do
impensável, pressupondo uma
irracionalidade, um dispositivo infenso à análise, à hermenêutica,
escorregadio, cambiante, inapreensível.
Tome-se, à guisa de poema ‘paradigmático’ de Cair de costas, um que compõe o “I
Onoma” de Vá de valha (1992):
pedra o quadril uva o
veio
poema a
moenda usança o zuluso
musseque a favela bessangana o
moleque
Eis aí um poema que se recusa terminantemente a se
expor ao exercício analítico, tanto no que diz respeito ao viés simbólico,
quanto ao que tange às estruturas significantes. Trata-se de um poema que não
se quer linguagem, apesar de que, para tal fim, fazer-se em sememas que ao
somar-se resultam em versos ininteligíveis.
Daí a hipótese foucaultiana que quero suscitar: a
única análise a que o poema de Ronald se abre em frinchas é àquela cuja sanha é
pela irrupção da luta, da guerra. A linguagem deixa de ser linguagem para se
tornar dispositivo, máquina de mover tensões, de estabelecer conflitos entre
forças adversas, por meio de estratégias e táticas que, ao invés de fazer girar
a engrenagem do inteligível, interrompe seu funcionamento ao fazer entrechocar
seus dentes de ferro.
A relação que a poesia do Ronald estabelece com o
leitor é a da irritação bélica e não a do alívio proporcionada pelo sentido.
Que não se busque socorro, para apreensão do
dispositivo Cair de costas, nem na
dialética, com sua lógica da contradição e seu desprezo pelo caráter fortuito e
aleatório do acontecimento; muito
menos na semiótica e sua estrutura comunicativa e apaziguadora. O leitor que
ousar lançar-se ao estranhamento que tal coletânea de poemas proporciona, deve
vir armado, pois não se trata de uma leitura fruitiva, mas de um confronto
violento com consciências adormecidas, com cognições afetadas, com lógicas
viciadas, com certezas em desuso.
Não há sentido em Cair de costas, apenas acontecimentos,
e estes vivenciados tão-só por leitores que não perderam a capacidade de se
reinventar.
O Ronald diz esta coisa melhor:
diz
trair a tradição
inventar a
Erre Amaral. Escritor. Autor de Uma Denise (romance, Editora Cousa,
2014), Le mot juste (romance, Orobó
Edições, 2011) e Paul Ricoeur e as faces
da ideologia (ensaio, Editora da
UFG, 2008). Assina a coluna “O mal-entendido universal” na Germina Literatura e
Arte (http://www.germinaliteratura.com.br/) e a coluna “Memorabilia” na Revista Pausa
(http://revistapausa.blogspot.com.br/2015/02/memorabilia_21.html). Edita a
Palávoraz – Literatura e Afins (http://www.youblisher.com/p/941335-REVISTA-PALAVORAZ-EDICAO-02/). Coordena o Projeto de Extensão Café Literário (http://site.ufvjm.edu.br/cafeliterario/) em Diamantina-MG e é Líder do Projeto Caravana
Rolidey
(https://www.facebook.com/pages/Caravana-Rolidey/1597371087147365?fref=ts). Despacha no blog piERREmenardiando (http://pierremenardiando.blogspot.com.br/).
Comentários