A
MESA POSTA
Ronald Augusto(*)
Contudo, a poesia “poeticamente
incorreta” de Os mortos na sala de jantar, desde o início adverte o
leitor para a necessidade de deixar de lado toda esperança ao entrar no livro
que tem diante de si: “bem-vindo à existência fútil e erétil/ daqui não há
retorno/ e em instantes, nem sono/ ao passar pela aduana...”. O leitor ao sacar
o volume da estante, como se puxara uma gaveta mortuária, lê nos poemas ali
embalsamados, a um só tempo, a epígrafe e o epitáfio de um percurso de
linguagem. Selecionados, combinados, e franqueados à visitação pública, os
despojos de escavações sacrílegas - o desígnio do acervo que começamos a vasculhar nos
faz retroagir à palavra grega
sema,
que admite as acepções tanto de “signo” como de “sepultura”. Com espírito poundiano, Ademir
Demarchi saqueia as catacumbas da barbárie: “durante décadas/ inglaterra e
estados unidos/ compravam montanhas e montanhas de múmias/ trazidas por seus
indianas jones/ a preços que chegavam a 18 dólares a tonelada/ para usá-las
como combustível em locomotivas/ e matéria-prima de papel de embrulho”.
Desprendem-se dos sons e dos sentidos, tanto o “olor que afugenta o tédio”,
como o vapor fétido das vísceras do faraó recheando o vaso de canopo.
As figurações mortuárias de Ademir Demarchi
não poetizam o assunto, a metáfora da morte como “antessala da ressurreição” é
aqui descartada. Versos como estes do poeta alemão Lohenstein: “Quando o Senhor
colher a messe ao cemitério,/ Eu - caveira -, num rosto de anjo me revelo”, resultam
edulcorados demais se confrontados às signâncias antropofágicas de Ademir
Demarchi. Na invenção da (sua) morte, o poeta traz para o foco da fatura
escritural em apreço, por exemplo, a industriosidade capitalista no comércio
rapace das funerárias, a “linha de desmontagem” de um hospital que a guerra do
Iraque fez se apossar de parte de um cemitério (digamos que para otimizar as
coisas), o cadáver pop e libidinoso de Carmen Miranda enterrado “com o tailleur
vermelho sangue”, a mortandade espetacular causada pelo incêndio do edifício
Joelma, etc. Os mortos na sala de jantar é um álbum-síntese em que vão
abrigados no interior de sua economia compositiva os vários registros da tópica
do além-túmulo através dos tempos e das culturas, e onde se atritam o kitsch
e o aristocrático; os defuntos de Evita e Ramsés “livres de sangue e fezes”.
Roman Jakobson, estudando o “riso
ritual” no contexto medieval, argumenta que é “a hilaridade que possibilita ao
homem comum terreno reafirmar-se face à face com o Misterioso”, forma pela qual
nos referimos alusivamente à morte - mais uma vez a escolha por tratar a coisa de modo
não-direto, a parábola, o trapaceio no jogo de xadrez visando a alterar o
resultado anunciado desde o primeiro lance, etc. E é mesmo com o mascaramento,
com as personae da hilaridade, ou seja, com o esquizo condensare
do poema - esta outra forma de
escarificação tumular por meio da qual o poeta mortifica a língua cotidiana -, que Ademir Demarchi consegue
se haver consigo mesmo no que diz respeito, por exemplo, ao quesito da
mortalidade pessoal. Como no paradoxo do sorriso do Gato de Cheshire, onde
vemos desabrochar um “sorriso sem gato”, o sorriso persistindo quando já não há
mais corpo, nem indício do felino no ar, o poeta tem ciência da sua
decomposição, do seu perecimento, enfim, do próprio desaparecimento. Mas, ao
deparar com o seu “juízo final” - e ele talvez, neste momento, parodie um verso de
Manuel Bandeira dizendo “mas que juízo final pode satisfazer meu sonho de juízo
final?” -, o poeta não perderá a chance
de, afinal, arreganhar um sorriso malandro. Mais deserto do que diserto, o
poeta escreve aos pósteros a ode “Da maturidade”: “adulto/ maduro/ defunto”. E,
condenado ao mausoléu, à memória sem imaginação, sem physis nem techne,
resta-lhe o não-ser do medalhão: “moderno/ moribundo/ eterno”.
Mallarmé, no Un coup de dés,
poema espalmado contra a quase impenetrável negrura semântica do branco da
página, também reconhece a hilaridade, “gargalhada sombria” do pensamento
contra o “veludo enrugado” da meia-noite, como estratagema de que se deve
dispor quando se trata de sonhar, ou sondar, o vazio, a esterilidade, o
naufrágio, enfim, estas outras figurações com que a morte se honora. O poema,
arrancado ao fracasso, se insinua ao silêncio, e enrolado em ironia ou
mistério, se precipita num tourbillon d’hilarité et d’horreur. O riso
mallarmeano é o riso eterno da caveira, da insânia, do nada onde toute
réalité se dissout.
Dissipa-se a realidade, “desaparece o
corpo/ permanece o morto” na luz suja dos seus ossos. Se o carpe diem da
nossa realidade, que vai, cai (come corpo morto cade do versículo
dantesco) e acaba-começa num “ai”, abona a solução paronomástica womb/tomb
urdida por Ademir Demarchi, por seu turno, a metáfora barroca do teatro de
Calderón de la Barca, segundo a qual “a vida é sonho”, envereda para a
imagem-soma de que, em fim de contas, encenamos, aqui e agora, o drama desta
outra morte de “aquém-túmulo”. Tomando um desvio a partir de Paul Valéry, para
quem o ser é um defeito na pureza do não-ser, Ademir fala de um desnascer na
e para a morte, projeção da vida como pesadelo. Produto da “ambigüidade
falível” do humano, a morte, como diz o poema de enterramento do livro,
“Epitáfio Final”: “...é uma invenção”. O poeta, “através de” Ramsés, e sem
fazer as vezes do moralizador, confessa: “meu túmulo/ minha maior obra”. E aí
se envagina.
(*) Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta,
músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro
(1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas
(2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Empresto do Visitante
(2013). Despacha no blog www.poesia-pau.blogspot.com
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