[A propósito de umas tretas que o antropólogo
Antonio Risério andou publicando no FB]
1. De saída, algo que já se tornou um
clássico. A testemunha negra [no caso Joel Rufino] favorável ao ponto de vista
do branco [no caso Antonio Risério] que, nesta situação, pretende provar que os
demais negros estão enganados ao recusarem a noção de mestiço e seu dégradé como alternativa à distinção-cisão
entre negros e brancos que, há mais de 300 anos, representa ou descreve nossos
conflitos étnicos fundados sobre um antiquado raciocínio de base racial. Nestas situações é
conveniente que se conceda, de bom grado, autoridade e competência a alguma
testemunha negra que venha, claro, abonar o ponto de vista do objetor,
justamente porque a dramaticidade desse tipo de depoimento serve para reforçar a
intenção de desqualificação das lutas e posições dos negros (reduzidas a mero
ressentimento) contra todas as formas de racismo disfarçado.
2. O que Risério chama de “racialismo de
resultados”, eu chamo de ações positivas e institucionais que visam diminuir as
desigualdades entre negros e brancos, vide as cotas raciais, por exemplo.
3. A “mulatice” é um conceito fraco que
não resolve a crueldade do dégradé
para o mais claro que serve como vantagem ou trunfo à estima social. É notório
o baixo índice de tolerância do senso comum com relação ao negro como
possibilidade de autoimagem; por outro lado estamos familiarizados com a maior
tolerância desse mesmo senso comum com relação à morenidade/mulatice enquanto
clichê identitário da “brasilidade”.
4. A proposição “Obama jamais se elegeria
presidente de países africanos como Angola ou a Nigéria” não faz sentido
nenhum. Segundo o antropólogo, os eleitores (negros) dessas nações não votariam
num candidato mestiço. Também não sei de onde ele retirou essa informação de
que “o mulato é vítima de terrível preconceito em países negroafricanos”. Onde
estão esses dados? Se alguém souber algo a respeito que me apresente.
5. A ilusão da pós-racialidade: dizer que
somos apenas mestiços mais ou menos escuros não convence o racista. Dependendo
das circunstâncias o mestiço mais escuro será tratado como “negro”; por outro
lado, o racista tratará o mestiço mais claro apenas como não-negro, e até
segunda ordem. Historicamente os desrespeitos se plasmam a partir dos conflitos
de reconhecimento e autorreconhecimento entre negros e brancos em luta por
estima no interior da sociedade. Oportunidades são oferecidas ou negadas em
função do sujeito ser menos ou mais negro, e mesmo que o indivíduo mestiço mais
claro tenha mais chances de êxito, em algum momento sua porção mais escura será
mencionada a título de cobrança ao obséquio da confiança que lhe foi concedido.
Quando, por exemplo, um mestiço/mulato se autodeclara negro no embate político
contra o racismo, ele não está operando com o mesmo conceito de raça que um
supremacista opera. Lutar contra o racismo não implica a crença no conceito já
vencido de raça. O racista é que precisa dessa crença, aliás, se ele não acreditasse
que há raças humanas, então ele não poderia criar narrativas de justificação
nem reivindicar a superioridade da sua raça em relação às outras. Parece óbvio,
mas é necessário lembrar essas coisas para que se evite a transferência
desonesta de responsabilidades. Expressões como “coisa de negro”, “negrice”
etc, são formas cunhadas e reiteradas pelo pensamento racista na tentativa de imputar ao negro a invenção de um essencialismo racial com que se definiria sem
grandes problemas.
6. Por fim, os movimentos negros
brasileiros, os movimentos negros estadunidenses e os países negroafricanos saídos
de suas lutas contra o colonialismo, estariam todos errados, todos, porque,
segundo Risério, junto com a recusa da mulatice estariam recusando na verdade o
fato biológico da mestiçagem. Trata-se de uma falácia. Reconhecer que em termos
genéticos todos nós somos mestiços, não invalida a dimensão político-cultural
implicada no autorreconhecimento das identidades étnicas das pessoas. A objeção
do antropólogo tenta passar a ideia de que afirmar-se negro resultaria por
ligação direta na instauração de uma espécie de entidade biológica cuja
essência (espelhada em modos de ser no mundo) seria irredutível a outras.
Entretanto, afirmar-se negro significa, entre outras coisas, afirmar em
primeiro plano a dignidade de um indivíduo individuado capaz de deslocar-se
cultural e politicamente em interação crítica e inventiva tanto com outros
indivíduos (próximos ou não), quanto com os dilemas do seu passado e do seu
presente que convergem num aqui precário e movediço.
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