A explicação no lugar da voz
Ronald
Augusto[1]
A motivação para esse texto nasce de uma postagem[2]
do poeta Heitor Ferraz em
sua página do Facebook a propósito de reportagem publicada no G1 sobre o Prêmio UBC 2019[3],
conferido ao compositor Milton Nascimento. Mauro
Ferreira, blogueiro do portal, assina a matéria em que defende a posição
segundo a qual a arte de Milton Nascimento “é tão grande que nem cabe
explicação”. Na opinião do jornalista, durante o evento de premiação, nenhum
amigo ou parceiro de Milton deu conta de explicar a grandeza divina dessa obra
“vinda ninguém sabe de onde”.
De outra parte, Heitor Ferraz questiona – e com razão,
pois tudo na reportagem soa irritantemente laudatório – a visão sacralizadora e
demasiadamente reificada sobre a arte de Milton Nascimento. O poeta salta para
o campo oposto e argumenta que tal concepção acomoda “a cultura negra no campo
dos milagres”. Para Ferraz, Milton “tem a voz da escravidão brasileira, voz que
vem das senzalas”. A arte do compositor de Milagre
dos peixes (1973) radicaria em uma circunstância determinada.
Diante desse quadro controverso, onde duas possibilidades
de explicação se apresentam em conflito – uma delas faz da suspensão da
explicação a própria explicação –, senti a necessidade de dizer algumas coisas
e pôr em questão outras.
Afirmar que a arte (canto e composições) de Milton
Nascimento é inexplicável, sem lastro social e histórico, que seria produto de
um milagre antinaturalista, acaba por reforçar uma interpretação da qual se
extrai que as capacidades das pessoas negras não teriam relação com o aspecto
volitivo ou que tais capacidades talvez não pudessem ser desenvolvidas nem se
configurar como conquistas, construções, enfim, como resultado de algum empenho
autodeterminado. A criatividade de Milton só se explicaria, portanto, pelo
insondável, por algo que apelasse ao misterioso. Em outras palavras, tal como procuram
demonstrar algumas narrativas a propósito da trajetória vivencial e criativa de
mestres do blues, Milton seria uma
espécie de pactário. Seu canto sem rival resultaria de um contrato com o diabo
no âmbito da encruzilhada. Isto é, o extraordinário serviria de porta de acesso
à compreensão de sua arte.
Por outro lado, explicar sua voz apenas pela chave da
ancestralidade negra e, além disso, circunscrevendo essa ancestralidade ao
desvio da escravidão no Brasil (perversa narrativa de origem imposta em termos
ontológicos às diásporas africanas), também me parece uma forma de redução, de
confinamento, que, de resto, evoca um vago preconceito. A suspensão de qualquer
tentativa de explicação, de um lado, e, de outro lado, a explicação
aparentemente cumpridora (eu poderia dizer “lacradora”, mas não indica que seja
o caso), feita no calor da hora, se encontram no terreno estéril do cancelamento
do debate. Ambos os movimentos não dão conta de experimentar algo propriamente
não convencional acerca da coisa. De todo modo, não pretendo aqui explicar o
canto de Milton Nascimento propondo uma terceira via conciliadora, mas apenas avançar
algumas indagações e um par de pensamentos.
A voz de Milton é a voz do povo negro marcado por
violências e bênçãos? Subjaz à questão o problema da interpretação que
representa “esse povo” como uma unidade e, ainda, o entendimento ligeiro de que
alguns criadores e seu povo formam um
contínuo como que indistinto. Milton Nascimento e o povo de que é filho significariam
um único ciclo de ação e pensamento; não se
perceberia a menor descontinuidade entre um e outro.
O drama do artista como “antena da raça”, de acordo
com o sonho de Ezra Pound, volta a ser encenado. Romanticamente o compositor
carioca-mineiro toma o posto de Castro Alves. Milton, refém de um enredo
histórico, falaria do mesmo modo para e por todos os negros. Falaria? Muitos
não negros consideram que pessoas negras são afetadas pelo racismo sempre da
mesma maneira, um tipo de conhecimento por atacado: ou fomos/somos deprimidos
em nosso fervor por liberdade e humanidade ou experimentamos, em reação, uma
espécie de transe purgativo graças à nossa musicalidade brutalista e ancestral
por meio da qual resistimos desde o início.
Dúvidas que me ocorrem. A dor e a alegria do “povo
negro” seriam invariavelmente emanações da escravidão no Brasil do período colonial?
É como se seu sofrimento e a desejada superação fossem meros sucedâneos da
escravidão, sintomas enclausurados aquém e além de outras chances e predicações
relativas à condição humana. Aqui e ali persiste a solidariedade tributária de
concepções ready-mades sobre as quais
se equilibra a curiosidade quanto à “vida dos negros” – seja nas senzalas, seja
nas periferias –, o fetichismo a respeito de como acontece esse “ser negro” que
sucumbe, por assim dizer, ao quantificador “o povo negro”. Cada sujeito negro
(cada corpo negro?) estaria fadado a exprimir (exteriorizar) apenas isto e mais
nada: uma abissal alma negra, porém como decalque do raciocínio essencialista e
de base racial (raciocínio apreciado por muitos brancos e negros); uma
interioridade tão desconhecida quanto exaustivamente parafraseada por devotados
analistas.
Algumas dessas perguntas e considerações objetivam, na
verdade, trazer à tona o sempre negligenciado problema do branco. Porque, ao
que parece, “o problema do negro”, há tempos, já é consabido de maneira cabal.
[1]
Ronald Augusto é poeta, letrista
e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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