[artigo publicado originalmente em:
Ronald
Augusto[1]
No início de novembro
postei em minha página do Facebook
o seguinte comentário: estamos no mês em que o Brasil finge dar atenção aos desejos e lutas de sua população negra. O sentido da
ironia não visava deprimir o ânimo de uns, nem desprezar a empatia de outros em
relação ao combate que deve ser movido contra o racismo institucional e
individual. Pelo contrário, o interesse era afirmar que devemos pensar a
mobilização antirracista como um imperativo moral ao problema estruturante de
nossa formação e não apenas registrar uma efeméride sentimental por meio da
qual se tenta purgar o trauma racial em que brancos e negros estão implicados,
estes como vítimas, aqueles como patrocinadores (indiferentes ou não) do
racismo que é inseparável dos privilégios de que gozam.
Para nós que enfrentamos
e pensamos essa ideologia sem descanso ao longo do ano fiscal, a questão mais
complicada é deparar com a negação da violência, não obstante pesquisas que
comprovam o desemprego, a pobreza e o genocídio que atingem preferencialmente os
negros. Entretanto, é surpreendente como no mês de novembro o sentimento das
pessoas parece ser o de negar a negação da ideologia do racismo. Há tantas manifestações
de solidariedade e de assentimento à luta dos negros por respeito e estima que
a sensação que se tem é de que nos evadimos do Brasil por alguns dias. O
novembro é preto.
A noção de intervalo
organiza nossa disposição para a tolerância ou para a intolerância. Duas
situações. No intervalo dos dias de carnaval toleramos, por exemplo, o
preconceito recreativo e o racismo risonho contra gays e negros. O desrespeito
social assume a forma divertida das
marchinhas carnavalescas reacionárias e reitera a instituição do blackface (o cosplay
de crioulo, crioula) a pretexto de homenagem aos não-brancos. Findo o carnaval,
todos voltariam à cordial incivilidade.
A segunda situação de
intervalo, isto é, de uma zona de escape onde supostamente
não precisamos responder por nossos atos e discursos ofensivos, diz respeito aos noventa minutos de
uma partida de futebol. Há quem justifique os ditos e
as agressões racistas dentro dos estádios por meio do conceito: cultura do futebol. Essa
cultura abrigaria uma moral toda particular que isentaria os envolvidos de prestar
contas de seus desacatos para além dos limites do estádio. Graças a esse guarda-chuva
de leniência seria possível justificar um amplo conjunto de agressões e
imposturas. Dentro dos estádios estaríamos autorizados, em nome da natureza das coisas futebolísticas, a
praticar toda espécie de barbárie. Por fim, fora
do intervalo de noventa minutos do ludopédio, voltaríamos a ser democratas.
À diferença desses dois modos de intervalo que suportam formas de intolerância, o Dia da Consciência Negra começa a se
constituir como um intervalo onde somos incitados, ainda
que temporariamente, a exercitar agora o respeito e a empatia relativamente à
história e à luta dos negros. Mas antes e depois de novembro a história é bem
outra. Festejamos um mês de representatividade preta e de negritude.
Dissimulamos onze meses de consciência humana, isto é, de branquitude
autocentrada, orgulhosa e ignorante de suas vantagens.
Uma vez que no Brasil a
necropolítica e a caridade andam de braços dados; que casos de racismo entram
no conjunto de situações que apenas geram
polêmica; e que muitos supõem que é melhor perdoar as ofensas – já que as
ofensas, ao menos aqui, não visam ofender – enfim, em vista disso, minha
tendência é nutrir um forte pessimismo em relação ao drama racial. E mesmo
reconhecendo a relevância do dia que evoca a memória de Zumbi, não me
sinto à vontade nem entusiasmado com o mês temático.
Antonio Callado disse
certa vez que era de uma geração que, a propósito das questões cruciais do
Brasil (desigualdades sociais e recuos políticos), lutou todas as lutas
importantes de seu tempo, mas perdeu todas. Assim, em relação ao racismo e dentro
dos meus modestos limites de intervenção, não me espanta que, aos cinquenta e
tantos anos, eu comece a experimentar análoga sensação de derrota. Soa meio
dramático, sim.
Por este motivo não
consigo esquecer que Kafka escreve, em algum lugar e frente à vertigem do
pesadelo, que deve haver esperança, sim, mas não para nós. Acontece que no
pesadelo do qual não consigo escapar, esse nós
não reúne a mínima cota que seja de brancos.
[1]
Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta.
Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas
(2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante
(2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no
http://www.sul21.com.br/jornal/
Comentários