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Em vista dos últimos acontecimentos políticos





Em vista dos últimos acontecimentos políticos
Ronald Augusto[1]



Salvemos essa porra, sim, mas desde que isso não signifique passar uma borracha nas falcatruas, sejam elas à direita, sejam à esquerda ou ao centro do leque político. O patriotismo da urgência urgentíssima. A rotina do curto prazo. Ah, Brasil, sempre esse negócio de que é preciso tirá-lo do buraco a qualquer custo. Estamos sempre à beira da dissolução econômica, institucional, moral. De um lado, o indigníssimo usurpador diz que agora que o salvamento acabara de chegar (suas reformas do mercado), um complô foi armado contra ele. Do outro lado, só com o Lula-lá poderemos impedir o sequestro completo dos nossos direitos e da normalidade democrática. Oi? Nossas escolhas devem ser sempre extremas e urgentes. Formular isso como uma questão, há muito deixou de fazer sentido. Que pensar que nada. Ou você acompanha ou você acompanha. Quem morre é sempre o outro.

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Os agnósticos com relação ao envolvimento do PT com a corrupção, explicam que até agora não se têm um conhecimento (evidências) suficientemente comprovado a respeito. Ao mesmo tempo, esses militantes agnósticos têm convicção de que todas as coisas são possíveis, inclusive o PT estar envolvido com a corrupção. De fato, este mundo é tão estranho, tudo pode acontecer ou não acontecer. Os agnósticos, no que diz respeito ao envolvimento ou não do PT com a corrupção, se concedem o direito de viver em um mundo mais vasto, em um mundo mais utópico. Com isto eles se mostram mais tolerantes, ao menos aparentemente.

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No fundo o devoto não tem coragem de não acreditar. Por isso sacode para si mesmo, como um troféu, a circunstancial falta de provas sobre a lisura do objeto de sua devoção, o que torna um pouco mais tolerável a enrustida incredulidade de que se ressente.

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Entretanto, não basta ser contrário ao golpe. Não basta repudiar um governo reacionário, misógino e racista. Para não ser tomado por um traíra você tem que ser meio esquerdofrênico e não contrariar a limitância.

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Chego a pensar que, às vezes, é pior assistir ao golpista se pronunciando do que acompanhar ele andando pé ante pé indo para púlpito ou o deixando. Parece um autômato, um títere. Ele caminha como que a contragosto, como se os anos em que esteve deitado em um sarcófago tivessem lhe tirado a naturalidade humana de andar sobre as duas pernas. É horripilante.

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A OAB é sempre demagógica, intencionalmente retardatária e oportunista.

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Ivo Sartori representa como ninguém, talvez mais até do que Michel Temer, o estado de espírito desse tempo em que estamos imersos. Governo duro, isto é, sem a plasticidade da inteligência e que se projeta sobre a realidade através de um discurso retrô rebaixado até a clicheria mais abjeta. Se quisermos dar crédito à metáfora do “estadista”, isto é, dando assentimento aos seus sentidos positivos, Sartori figura nas antípodas desta coisa. Entretanto, sua condição de antípoda é mais fraca ainda: ele é o simulacro do avesso de um estadista. Não serve nem como contraste, mesmo nefasto, serve ao escárnio nosso e de si mesmo. Um tipo diminuído de Mussolini.




[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com


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