Tolerância como
princípio maximalista
Ronald Augusto[1]
A tolerância é um
princípio bom e sempre deve ser adotado? O tolerante não se revela às vezes
intrinsicamente intolerante? Em que quadro ou em que circunstâncias a
tolerância começaria a fazer água? O conceito de tolerância suscita essas e
outras questões para as quais – é preciso dizer desde logo – não pretendemos
apontar saídas definitivas. Nos propomos aqui a expor tão somente alguns dos
dilemas que acompanham esse princípio usando como roteiro o ensaio “Tolerância
e interpretação”[2]
do filósofo Marcelo Dascal. Grosso modo, o objetivo de Dascal é apresentar
através do seu ensaio um argumento em favor da tolerância. As reflexões do
filósofo tomam por base certos resultados da filosofia da linguagem e da
pragmática em particular. A parte inicial do ensaio de Dascal se constitui em
um movimento de interpretação do termo “tolerância”. Sua intenção é tanto
elucidar o princípio, quanto ilustrar a investigação sobre a qual se firmará o
argumento favorável à tolerância.
Além de mencionar a
concepção de tolerância comumente associada ao sofrimento e à paciência, Dascal
lembra que, por outro lado, em termos etimológicos o princípio da tolerância
pode admitir conotações menos passivas, isto é, ser tolerante não significa
apenas aguentar aquilo que nos parece incorreto ou inaceitável. Deste ponto de
vista a tolerância seria mais positiva ou quase uma virtude, pois envolveria
uma decisão ou uma deliberação.
Um dos primeiros
pensadores a defender a tolerância foi Locke. Ainda que de um ponto de vista
religioso, pois Locke era devoto de uma lei divina única e universal, seu
liberalismo defendia uma tolerância absoluta em matéria de religião, isto é, o
governo deveria demonstrar indiferença às crenças religiosas. Entretanto, tal
concepção de tolerância, que traz em seu bojo o traço de fundo religioso, tende
a se expressar em termos de que o tolerante educado e cultivado pode permitir a
opinião mesmo “errada” do outro, já que é um direito dele (o outro) manifestar
um ponto de vista, desde que não venha a agredir o direito e a opinião dos
demais.
Dascal chama a atenção
para os sentidos de “permissão” (a pressuposição de perversas assimetrias atinentes
ao direito entre indivíduos) e do “outro” como aquele que tem crenças
“estranhas” à maioria. Para dar conta desses sentidos que em alguma medida
deprimem o princípio da tolerância defendido em seu ensaio, Dascal, a partir de
Mill, analisa a distinção entre tolerância como princípio minimalista e tolerância como princípio maximalista. No primeiro se apela à ideia de que o tolerante – de
viés paternalista ou mesmo oportunista –, conhecendo a verdade, se dispõe a
admitir que o outro expresse uma opinião falsa, desde que não prejudique o
grupo. Já no princípio maximalista, o
tolerante pode afirmar que não tem o monopólio da verdade ou da moralidade e
por isso mesmo deve respeitar ideias diferentes na medida em que admite a
possibilidade de que elas talvez sejam tão verdadeiras ou morais quanto as
suas.
Marcelo Dascal aceita que
o princípio maximalista confere à
tolerância um significado mais positivo do que a concepção minimalista. A vida em sociedade exige que fomentemos as mais
diversas ideias, inclusive aquelas que são pouco aceitas por essa mesma
sociedade, mas que precisam ser expressas, pois a proliferação de ideias e
concepções cumpre a função de permitir “uma ‘cobertura’ tão ampla quanto
possível da verdade – da mesma forma que o interesse biológico/evolutivo é o de
manter um ‘fundo’ de genes o mais rico possível”.
Entretanto, para Dascal,
a noção relativa à existência de ideias “estranhas” permanece sem uma
contradita. O argumento serve ainda como tentativa de convencimento da maioria
(ou do pensamento dominante) de que é preciso “tolerar” isto que, aos seus
olhos, se caracteriza como estranho ou fora da normalidade. Para Dascal o princípio de falibilidade é,
portanto, insuficiente relativamente à adoção de uma visão positiva da tolerância.
Dascal entende que para
justificar a tolerância positiva é necessário recorrer a outros princípios; por
exemplo, o princípio eclético. Segundo o filósofo, esse princípio aponta para a
questão segundo a qual a verdade não pode ser circunscrita a uma só teoria ou
visão de mundo, mas ela como que seria distribuída pelas diversas teorias e
visões de mundo. A verdade talvez pudesse ser recuperada através da ampla
consideração da sequência de teorias e pontos de vista existentes. De acordo
com Marcelo Dascal isso não implicaria em relativismo, mas sim num verdadeiro
pluralismo. Um exemplo, citado no ensaio, de tolerância positiva ou maximalista apoiada no princípio
eclético é o da relação de complementação
e aceitação mútua (os itálicos
são de Dascal) existentes entre as três religiões mais importantes do Japão:
xintoísmo, budismo e confucionismo. Para o ensaísta essas religiões não se
“toleram” pela eventualidade de uma delas poder assumir posição dominante sobre
as outras, mas apenas por reconhecer o valor e a função própria a cada uma.
Um passo importante dado
por Marcelo Dascal é quando ele pensa o princípio da tolerância relacionado à
“semântica ingênua”. Os dois pressupostos básicos dessa espécie de semântica
são os seguintes: (a) as significações possuem uma existência objetiva,
independente do uso e da forma pela qual são expressas; e (b) a interpretação
de uma forma de discurso é diretamente acessível a quem quer que detenha o
domínio das regras semânticas da língua. Entretanto, um exame mais detido da
situação vai nos mostrar que a “semântica ingênua” fracassa ao entronizar um
tipo de regra purificada para resolver de forma cabal conflito de ideias e
opiniões. Dascal avalia que as significações não são entidades que possam ser
alienadas de seu uso. Há uma série de formas de dependência contextual e outras
ambiguidades que perturbam o processo interpretativo. Cito:
A
interpretação de um enunciado ou texto está muito longe de ser um processo
algoritmo preciso. Na melhor das hipóteses, as regras que a regem são de
natureza heurística. Elas permitem formular hipóteses
interpretativas mais ou menos bem formuladas, que devem, porém, ser testadas à
luz do contexto imediato...
O princípio da tolerância
que surge e é engendrado para mediar conflitos de ideias, precisa assumir algo
dessa condição heurística, pois o tolerante deve estar preparado tanto para
formular hipóteses interpretativas,
bem como para confrontá-las com outras hipóteses na perspectiva de um teste de
validade relacionado às circunstâncias imediatas. O pano de fundo contextual
que informa o processo interpretativo se projeta sobre ideias, doutrinas e
crenças. O conflito de ideias, de acordo com Marcelo Dascal, se efetiva na arena
“suja” da interpretação que não deixa de ser, em alguma medida, a própria
dinâmica da tolerância num movimento pendular entre minimalismo e maximalismo.
Nessa perspectiva, Marcelo
Dascal conclui seu ensaio se comprometendo com a ideia de que o princípio da
tolerância – que deve começar já na etapa da interpretação em dimensão não
ingênua – representa uma das expressões de que o dogmatismo e a intransigência
não se afinam com aquilo que sabemos sobre nossas capacidades cognitivas que, o
mais das vezes, revelam grande interesse na ampliação dos limites do mundo
vivido.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico,
letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya
(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No
Assoalho Duro (2007), Cair de Costas
(2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com
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