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Sobre Confissões Aplicadas







“Há decerto o caso em que alguém, mais tarde, me revela o seu íntimo através de uma confissão: mas lá por isso acontecer não me fornece qualquer explicação exterior e interior, pois tenho que dar crédito à confissão. A confissão é, sim, evidentemente algo de exterior.”
(Wittgenstein, Zettel, aforismo 558)

Uma confissão tem pelo menos duas personagens: aquela que revela sua intimidade e aquela a quem é revelada a intimidade.
Uma confissão acontece “mais tarde”: pressupõe a confiança no confessor (que geralmente é estabelecida no tempo). Se não confio no confessor e, sobretudo, se o confessor desconfia de mim, não há confissão nem confessor.
“Explicação exterior” é diferente de “algo exterior”. Uma “explicação”, seja “exterior”, seja “interior”, pode ser verdadeira ou falsa, pode, portanto, ser desacreditada ou posta em dúvida. No caso da confissão, tenho que dar crédito a ela. Dar crédito à confissão é condição para que a confissão a confissão seja possível.  Retirar o crédito da confissão é retirar a possibilidade de jogar o jogo das confissões, tratando-se as confissões, erroneamente, como se fossem proposições. Portanto, a confissão pressupõe a confiança que, como já disse, exige tempo.
As confissões não entram na categoria do verdadeiro ou do falso. O que se deseja através da confissão é uma satisfação como a compaixão, a piedade, o amor, o respeito.
Não sendo a confissão uma explicação exterior (nem interior), a confissão não é também algo interior ou privado, não é “solilóquio” – mesmo um solilóquio não é algo interior, pois é pensado em concordância com as regras (exteriores e públicas) da linguagem – mas algo exterior.
A exterioridade da confissão é a informação que ela transmite. No caso das confissões de Ronald Augusto, à informação alia-se o uso concreto da linguagem, o que acentua a exterioridade.
Essa conexão entre confissão e exterioridade nos revela, à revelia do que pensam muitos poetas e seus confessores-professores, que o poema é uma trans-Missão de informações, e, como tal, amparado pelo crédito que se tem que dar às confissões, podemos julgá-las como úteis, inúteis, instrutivas ou não, satisfatórias, insatisfatórias.
Pensando sobre o título do livro, Confissões aplicadas (Ame o poema Editora, 2004), constata-se a preocupação do poeta, com a utilidade ou aplicabilidade de seus poemas-confissões, utilidade e exatidão que normalmente associam-se apenas à atividade técnica ou científica, quando se fala, por exemplo, em física aplicada, matemática aplicada, filosofia aplicada ou, provavelmente como preferiria o autor, geometria aplicada (Paul Valéry).
O que Ronald Augusto confessa? (Confessar pressupõe alguma pena ou erro) Curiosamente, o livro em que o autor verdadeiramente confessa, não é esse, mas Outra vegada.
Por vezes, o autor fala também como um missionário questionador, como o confessor de uma “fé”, ou melhor, como confessor de uma “questão”. No fundo, podem ser uma mesma coisa: por exemplo, quando Ronald Augusto confessa sua fé passada na fissura da linguagem (ou fé-fissura) e de como isso o conduziu ao erro (errações). Sua questão-missão pervadindo sua vida (ver “Fissuras de linguagem”, 2):

faltando três horas e pouco
o que posso dizer que não
seja arremate de louco?
faltando três horas de estrada
posso costurar breves panos
anos doidos com linha magra

posso perguntar pelo início:
por que você foi tão confuso?
respondo: lia des(a)tino
pois minha mão não anotava
de outro modo o meu destino

erros estocásticos são
comuns em semelhante ofício
talvez eu tenha ido longe
longe demais nesta fissura
de linguagem

Nestes poemas não se brinca de vida interior (Ronald Augusto revela o íntimo de sua vida exterior) e, assim, o lugar comum das confissões inexiste aqui. Seu método não é regido pela linearidade do dia-a-diacronia. Por isso, seu ofício chega a ser quase trágico: um Orestes ou um Odisseu errante e incompreendido que parece querer contentar-se (satisfação impossível) em ser o missionário de sua questão em uma comunidade de versideias. (Sua visão do paraíso: Ronald Augusto navegando nem satisfeito, nem insatisfeito, sem sombra e sem peso entre Dante e Ovídio, entre Homero e Ezra Pound, entre Machado e Poe.)

ata-me [a Hera] a meia-dúzia de superiores
poetas e pensadores que navego
[...]
porque me contento de errar entre eles






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