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Mostrando postagens de abril, 2011

Dois dedos de crítica sobre poesia e prosa

Desencantado carrossel e a decadência da infância Um dos traços da modernidade de Cervantes na composição do Quixote diz respeito à (in)definição de quem narra de fato as aventuras dessa novela paródica dos romances de cavalaria. A multiplicidade de narradores estabelece uma ambiguidade contínua de tempo e de pontos de vista relativamente ao motivo central do livro. O romance moderno inspirado no clássico cervantino leva às últimas consequências, embora sem propor-se a uma resolução, a dúvida de quem seria a voz narrativa. Tal condição impõe ao romance similitudes com o poema moderno. Paul Valéry, a partir dos ensinamentos de Mallarmé, diz que quem fala no poema é a própria linguagem. Com efeito, em muitos poemas de agora-agora se pode dizer que nem mesmo uma voz lírica se faz ouvir. Chegamos, por assim dizer, a uma opacidade ou a uma enunciação átona no campo do discurso literário. No entanto, lendo o livro de Diego Grando, Desencantado carrossel , percebo uma possibilidade expressi

O simbolismo bauhaus de Sob a faca giratória

A divisa carrolliana segundo a qual, no que toca à poesia, “a questão é fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”, preside a gestalt esotérica, ou o hermetismo compositivo de Péricles Prade. E em favor do que acabo de afirmar, servem de exemplo tanto os livros anteriores (não importando, inclusive, o gênero) deste polígrafo de imaginário radical, como a obra que agora é objeto do breve comentário. Por um momento, e pela via do contraste, submeto Sob a faca giratória a um jogo de plano e contraplano com o hermetismo lato sensu da poesia de Orides Fontela (1940-1998). Para ser mais preciso, antes opaca do que hermética, a linguagem de Orides também se impõe desafiadora, metálica. Seus poemas compõem um tipo de tratactus analógico acerca dos fenômenos, e estes acabam por ser representados como sombras luminosas que se descolam dos nomes que lhes designam. A poeta nos oferece esta sensação de hermetismo pela elisão e pela rarefação dos cortes solares que opera; o i

Fim das coisas velhas, eu bebo, sim

A primeira impressão não é bem a que fica, mas a que nos engana. O que importa é o que surte depois; a boa poesia nos desengana, o mesmo acontece com o amor. Começo esse comentário sobre o livro Fim das coisas velhas de Marco de Menezes de um modo meio impressionista, sim. É que meu sentimento com relação a esse livro foi ambíguo. Não consegui distinguir, ao primeiro gole (como ensina Hans Magnus Enzensberger), se o conteúdo do barril era de vinho ou de vinagre. Agora já sei. E parafraseando a anedota do bêbado e o gênio da lâmpada, bem que eu gostaria de ter mais barris de vinho como Fim das coisas velhas que jamais se esvaziassem, apesar de toda a minha sede. Muito bem, mas vamos ao que interessa. O livro, até onde vai minha interpretação, não se refere ao parti pris das coisas, mas à própria exaustão delas, tanto quanto à do discurso que as homenageia ou presentifica em tom pós-moderno. No entanto, advirto que essa indicação ao pós-moderno não é feita com o intento de censura o

"depois a estreia"

Claudio Cruz Não gosto de teatro. Cheguei a fazer alguma coisa, mas pouco (breves atuações, iluminação e sonoplastia). Concordo com Francois Truffaut que em seu filme Beijos proibidos pôs na boca de um personagem a seguinte afirmação: “O exército é como o teatro: um maravilhoso anacronismo”. No entanto, o poeta Claudio Cruz me ensinou a gostar de algumas experiências desse gênero. Gosto, portanto, do teatro inventado pelo ex-encenador (?) Claudio Cruz. Esperando Godot (de Beckett) e Marcos, IV, 23 (versão cênica para um texto de Borges), montadas por ele, e mais uma ou duas peças concebidas por outros diretores formam minha antologia pessoal no âmbito da arte do teatro. Foi o que sobrou. Uma parte mínima de Recordações de um encenador da província quando jovem (ed. Clarília, 2011), dois ou três excertos se não me engano, já está antecipada em A ilha do tesouro e outros poemas . Nesse livro de poemas Claudio entranha alguns textos indecidíveis cuja forma porosa roça a linha da prosa