Pular para o conteúdo principal

para não jogar conversa fora


(fotograma do filme Assalto ao trem pagador de Roberto Farias, 1962)


Para a matéria publicada em Zero Hora 
Pesquisa revela perfil dos escritores e personagens da literatura brasileira contemporânea  (link abaixo)* fui procurado para responder a duas questões relativas ao assunto; respondi, mas por alguma razão nenhuma delas foi aproveitada no debate.



Para não jogar fora meu esforço divido com os meus amigos as respostas com que atendi ao convite que me foi feito pelo jornalista responsável pela matéria.





ZH - A pesquisa de Regina Dalcastagnè mostra, com números, que o perfil médio do escritor brasileiro é homem, branco, com diploma superior e morando no Rio e em SP (72,7% são homens e 93,9% são brancos). A conclusão dela é que a literatura não é um campo tão livre como se costuma dizer, mas um território para poucos. A presença de escritores que fogem desse perfil médio, segundo Regina, causa desconforto no meio literário. Como você vê essa questão?

A conclusão da pesquisadora me dá a oportunidade de evocar o brevíssimo poema de José Paulo Paes intitulado “Lembrete cívico”, que diz: “homem público/ mulher pública”. As demarcações e os mecanismos de controle de territórios e de espaços de poder começam já no étimo, no léxico. No poema, o qualificativo “público” assume acepções radicalmente opostas dependendo do substantivo que esteja a acompanhá-lo. O meio literário é a representação especular, embora com suas singularidades, das imposturas e imposições socais e econômicas abrigadas sob o arco ideológico que é, por definição, conservador. Minha experiência como poeta e escritor em Porto Alegre me ensinou que o desconforto é mútuo, isto é, às vezes represento o outro, o estranho e, de outra parte, os demais escritores, que deveriam ser o que chamamos “os [meus] iguais”, formam um grupo com o qual não alcanço a menor identificação. Felizmente, a contragosto do solo, a literatura brasileira tem uma série de artistas que (não direi que fugiram) afrontaram esse “perfil médio”: Machado de Assis, Cruz e Sousa, Orides Fontela, Oliveira Silveira. Alguém argumentará que eles são exceções que confirmam a regra, mas, lembrando Jean-Luc Godard, digo que o cânone (o convencional) é a regra, a arte é exceção, mesmo.

ZH- A pesquisa também se debruça sobre o perfil dos personagens dos romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004. Com relação à ocupação, a maioria dos personagens negros é "bandido/contraventor" (20,4%), depois "empregado(a) doméstico(a)" (12,2%), "escravo" (9,2%), "profissional do sexo" (8,2%), "dona de casa" (6,1%) e "artista" (6,1%). Além disso, a maioria dos personagens negros morre por assassinato (61,1%), enquanto a maioria dos brancos morre por acidente ou doença (60,7%). Na sua opinião, esses números espelham a situação dos negros na sociedade brasileira ou apenas reforçam o preconceito (ou as duas coisas)?

Em primeiro lugar, os números não reforçam o preconceito, pelo contrário, servem de referência para um debate desanuviado a respeito do assunto. A pesquisa, mesmo tendo como objeto obras de ficção, apresenta um quadro muito próximo da realidade vivida pela maioria dos negros no Brasil. Por que razão, a simples publicação desses dados, poderia ratificar o preconceito? Tal enfoque levaria em seu bojo um potencial de piora da situação? O senso comum negacionista dessas fraturas sociais apontadas pela pesquisa, defende a lógica de que o silêncio ou a indiferença ao preconceito seriam as melhores armas para derrotá-lo. Mentira, se trata de uma falácia da retranca e da ética do “deixa-disso”. Podemos extrair como conclusão que a pesquisa não reforça o preconceito, mas as obras, sim, espelham e irrigam o preconceito naturalizado contra o negro na sociedade brasileira. E o perverso disso é que essa estupidificação, essa simplificação por via dos estereótipos se efetiva graças à aura do artístico, do literário.



(*)
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/cultura-e-lazer/segundo-caderno/noticia/2013/02/pesquisa-revela-perfil-dos-escritores-e-personagens-da-literatura-brasileira-contemporanea-4054469.html

Comentários

Cármen Machado disse…
Olá, poe(t)a!
Não sei se já comentei lá no facebook que fiz uso dessa matéria da ZH, incluindo as tuas colocações que não foram para a edição, no blog que eu tento alimentar.A título de provocação, compartilhei com alguns 'escritores' o questionamento sobre o panorama da diversidade escritor/personagem apontado pela pesquisa da ...???.
O resultado foi muitas e muitas curtidas no face, três comentários,dos quais pelo menos um acredito ter alguma relevância.
Como leitora contumaz -por paixão em primeiro lugar e formação em segundo- tenho dedicado-me a observar a representação étnica(de negros e negras, principalmente) tanto de escritores quanto de autores, entretanto sem apego metodológico e sem academismos: observo, tiro minhas conclusões, compartilho, às vezes, e tenho levado a provocação sobre assunto, sutilmente para a sala de aula, com alunos das séries finais do ensino fundamental nas quais atuo.
Mais ou menos no estilo "pra não jogar conversa fora", acredito que é isso, compartilhar uma ideia a partir de outra, que provavelmente levará a outra sobre a questão racial na nossa sociedade, um assunto que, a meu ver, está longe de ser "desanuviado".
Saudações.
Cármen Machado.
negra,leitora, professora.

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão ...

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a...

o falso problema de ugolino

A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma - aparente - scriptio plena . Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Nesse breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora, vencido pela fome, os cadáveres dos próprios filhos e netos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino com...