Ronald
Augusto[1]
“E uma
última palavra: esta peça é uma homenagem ao negro brasileiro, a quem, de
resto, a devo; e não apenas pela sua contribuição tão orgânica à cultura deste
país - melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver que me permitiu, sem
esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da
Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca.”
Vinicius de Moraes
Essas anotações
(deixadas à parte e incompletas), relativas aos tópicos verso/métrica e metapoesia,
são estudos provisórios com vistas a uma futura aventura de análise que,
espero, não demore a acontecer, e nasceram de forma subsidiária de um artigo
que escrevi a propósito de outros aspectos da peça Orfeu da Conceição de Vinicius de Moraes. A tragédia carioca foi
encenada pela primeira vez em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A
obra Orfeu da Conceição é, sob vários
aspectos, desbravadora, pois o poeta, se antecipando a muitos autores de
teatro, a escreveu para que fosse encenada por um elenco de atores negros –
fato até então inédito em nossa dramaturgia. Notável também o esforço de
Vinicius de Moraes na recriação do mito grego de Orfeu, transculturando-o, em
termos de sincronia, para o Brasil dos anos 40/50, ou seja, a persona de Orfeu é afivelada, agora,
sobre um rosto negro e reaparece no cenário de um morro do Rio de Janeiro
.
Fiel,
a princípio, às fontes mitológicas, Vinicius define um dos assuntos de sua
tragédia, isto é, a própria poesia, já na primeira fala de Orfeu, quando a
personagem diz: “ORFEU: Toda a música é minha, eu sou Orfeu!”.[2] Como o
herói trágico é poeta e músico não há como escapar das indicações
metalinguísticas e da referência à tarefa criativa (semelhante motivação se
encontra em dois filmes de Jean Cocteau, também dedicados ao mito de Orfeu: Orphée, 1950; e Le testament d’Orphée, 1959). E o Orfeu negro, sambista carioca, prossegue
na mesma toada: “Tudo o que eu aprendi, da posição/ À harmonia, e que se nada
fez/ É porque fez demais, fez poesia”.[3] Ainda
sobre o quesito do “poema que se dobra sobre si mesmo”, temos esses versos:
“ORFEU: Um gosto sem palavras, como só/ A música pode dar...”.[4]
Os
versos de Orfeu da Conceição – os dos
diálogos dramáticos – são, no geral, decassilábicos ou decassílabos. Embora nas
letras das músicas os metros sejam mais curtos (versos cujas variedades oscilam
de 5 a 7, 8 sílabas no máximo), em vários momentos deparamos um decassílabo disfarçado,
oculto na quebra de um verso para outro. Todavia, eventualmente vislumbramos a
ocorrência de alexandrinos também negaceados através do encadeamento entre os
versos. A contaminação semiótica é recíproca: os versos, portadores da
narrativa dramática, apesar de a cadência, em momentos-chave, torná-los um
pouco rituais, solenes e hieráticos, não deixam de se revelar
surpreendentemente distensos, hesitantes e domésticos. Por outro lado, na
estrutura secreta das letras dos sambas onde, por inércia, preferimos
sobrevalorizar o acento naïf e a
ginga, Vinicius consegue incrustar dados e convenções da tecnologia versificatória
que pareciam estranhos a essa manifestação de arte popular. Essa transação de
signos, essa encruza cambiante de informações estéticas começou a se
materializar em Orfeu da Conceição a
partir do instante em que – como ele mesmo escreve no prefácio à peça – Vinicius
de Moraes sentiu “no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos
músicos do morro carioca”.[5] Portanto,
a propósito do que está escrito acima, note-se, por exemplo, que na primeira
música da peça, o samba “Um nome de mulher...”,[6] a
análise da métrica revela o uso do enjambement na ocultação, primeiro, de um
dodecassílabo: “E um homem que se preza/
em prantos se desfaz” (tônicas na 6ª
e 12ª sílabas); a seguir ouvimos o(s) verso(s): “E faz o que não quer/ e perde a paz”, que é, com efeito, um decassílabo heroico (tônicas na 6ª e
10ª sílabas) dissimulado no arranjo versificatório da letra.
Na
mesma perspectiva de uma metrificação flexível e das fraturas do verso – enjambement/encadeamento –, é possível observar o
esquema, consagrado na tradição do teatro em versos, da passagem e da preservação
da estrutura métrica através do diálogo balanceado entre as personagens,
conforme se observa nesse exemplo onde, na voz de Eurídice, o virtual
decassílabo “Mem/bri/a/gar/des/tre/las...”[7] é
interrompido na sétima sílaba métrica que é átona, mas sendo complementado, em
seguida, já na voz de Orfeu com as três sílabas métricas finais “Ah/ne/guin/ha...”. O verso completo, sem o
parcelamento métrico entre Eurídice e Orfeu que o executam a duas vozes, à
maneira de um jogral, ficaria assim: “Me embriagar de estrelas... Ah,
neguinha!”. Vinicius de Moraes ministra a sua cultura poética (esse fine excess associado à poesia) no vaso
poroso das formas populares; a aspereza dúctil da fala na educação pela métrica
da tradição versificatória clássica. Qualidades díspares de linguagem postas em
relação; e onde uma não deve ser sobreposta à outra.
Mais
uma nota referente à questão do metapoema em Orfeu da Conceição. ORFEU: “Ah, minha Eurídice/ Meu verso, meu
silêncio, minha música”.[8] No
fragmento: o amor cortês, essencialmente trovadoresco. Orfeu corteja tanto a
sua arte quanto Eurídice, ele se refere a uma em termos da outra. Entoa: “minha
música”: a incidência etimológica na metáfora.
Ainda
sobre a questão da metrificação e de seu nagaceio nos versos de dois sambas:
“Eu e o meu amor...”;[9] e “Não
posso esquecer/ o teu olhar...”.[10] Os dois
últimos versos do primeiro samba formam, na verdade, um alexandrino (inclusive
com a presença da tônica na 6ª sílaba), graças ao recurso do enjambement que o dissimula do seguinte modo: “E
foi-se embora/ Para nunca mais voltar...”. Já no segundo samba, também
apenas no desfecho da letra, cujos versos todos são, à exceção do último, de
extensão mais curta (oscilam de quatro a seis sílabas), vemos a irrupção de um
decassílabo heroico, metro, aliás, predominante na estrutura desse drama em
versos. Vejamos o verso de dez sílabas (acentuação na sexta e décima sílabas):
“Sereno dos meus olhos já correu...”.
Vinicius
de Moraes em Orfeu da Conceição
enfrenta o desafio da voz dramática
cujo verso deve ter outra liga; trata-se quase da “palavra voando”, metáfora
por meio da qual Joyce define a letra cantada; é quase isso. Borges,
por sua vez, afirma que o verso que se impõe como pronúncia “nos faz lembrar
que antes de arte escrita foi uma arte oral: o verso nos lembra que
inicialmente foi um canto”. Um
canto que se foi. Entre as três vozes da poesia T. S. Eliot considera a voz
dramática – as outras são a épica e a lírica – como a mais desafiadora ao gênio
do poeta. Quando o autor de The waste
land sublinha a voz dramática, em detrimento da épica e da lírica, ele fala
em termos de uma reconquista, como ganho, do teatro em versos, talvez porque as
características mais híbridas concentradas em tal forma poética favoreçam a
conjugação, sem muitos conflitos, daquelas e, inclusive, de outras vozes.
[1]
Ronald
Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de
agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha
(1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blgspot.com e é diretor associado do website WWW.sibila.com.br
[2] MORAES, Vinicius de. Orfeu da Conceição (tragédia carioca).
Rio de Janeiro: Editora Dois Amigos, 1956. p.: 19
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