Heráclito
Meu
propósito, nesse breve comentário[1],
é, a partir de algumas referências avançadas por Edward Hussey no ensaio
“Heráclito” (em Primórdios da Filosofia
Grega), a propósito da forma do pensamento heraclitiano, chamar a atenção
para a presença de aspectos da linguagem de Heráclito no trabalho
poético-crítico de três autores fundamentais da tradição moderna e
contemporânea da poesia, a saber, T. S. Eliot, Octavio Paz e Haroldo de Campos.
Desde logo aviso ao leitor que o texto é incompleto e, em alguns momentos, não
esconde seu caráter de esboço ou de rascunho.
De
saída é curioso notar, marginalmente, que embora Parmênides – também um
pré-socrático como Heráclito – tenha materializado suas teses filosóficas em
versos, isto é, tenha penetrado, pelo menos aparentemente, mais no terreno da poesia
do que o próprio Heráclito (pois, ao que parece, Heráclito escreveu
exclusivamente em prosa), no entanto, foi justamente a linguagem heraclitiana,
ao contrário do que se poderia supor, que repercutiu de forma mais consequente
na imagética dos poetas. Uma lição que se extrai disso é a de que o domínio da
métrica (um dos recursos do fazer poético), por si só, não faz de ninguém um
poeta. Os hexâmetros homéricos com que Parmênides, na Via da Verdade, expõe sua tese de que só se pode pensar no que é ou
no que existe, não têm, a rigor, função significante, servem apenas de molde ou
de fôrma ao seu pensamento; em certa medida pode-se afirmar que o metro em
Parmênides resulta menos em ganho do que em perda. Na Poética há uma passagem em que Aristóteles, a propósito de questão
similar (embora sejam outros os envolvidos), diz o seguinte: “nada há de comum,
exceto a métrica, entre Homero e Empédocles; e por isso com justiça se chama de
poeta o primeiro e de filósofo o segundo”.
Em
outras palavras: pela via de uma função específica de linguagem, seja em prosa,
seja em verso, isto é, a função imagética, o texto filosófico de Heráclito
contém mais poesia do que o simulacro de poesia que Parmênides nos legou. Este
seria mais filósofo do que aquele, segundo a recepção da tradição poética.
No
texto de Hussey podemos verificar uma série de sucintos apontamentos sobre a
forma ou sobre os traços compositivos e textuais por meio dos quais Heráclito
constrói seu pensamento filosófico. Esses traços têm muitos pontos em comum com
o discurso da poesia. Por exemplo, a menção de Hussey às “sentenças aforísticas
sem [aparente] ligação formal”, nas quais o comentarista identifica um “estilo
único”, e Hussey vai além, cito: “A variegada prosa de Heráclito, artística e
cuidadosamente estilizada, vai de sentenças factuais em linguagem comum a
enunciados oraculares com efeitos poéticos especiais em vocabulário, ritmo e
arranjo de palavras. Muitas sentenças jogam com paradoxos ou se aventuram de
modo provocador no limiar da autocontradição”. A percepção de que o discurso de
Heráclito evolui através de “sentenças aforísticas sem ligação” tem relação
análoga ao princípio da parataxe que rege a poesia. A parataxe estrutura o
discurso de tal maneira que os enunciados formam sequências justapostas de
frases, sem que seja preciso o uso de conjunções coordenativas, temos uma
precipitação para a analogia, a arte, a forma, a síntese, enfim, a relação
entre as partes se dá de modo mais impreciso. De outra parte, a hipotaxe organiza o discurso com um
pendor para os aspectos lógicos, a ciência, o “conteúdo”, a análise.
Essa
característica paratática da linguagem heraclitiana talvez esteja por trás da
seguinte afirmação de Hussey que, através dela, refuta a pecha de “obscuro” com
que os gregos posteriores se referiam a Heráclito, diz o comentarista:
“Certamente Heráclito nem sempre buscava a ordem expositiva e a clareza como se
as costuma almejar”. Podemos considerar a aparente obscuridade de Heráclito
como uma intencionalidade, uma determinação, pois, de acordo com Hussey, o
filósofo “explora todos os recursos da língua grega em seu esforço de
representar as coisas como são”. Parece-me
que a disposição de Heráclito para explorar ao máximo os recursos do seu idioma
materno tem razoável relação com a noção carrolliana segundo a qual, no que
toca à poesia, “a questão é fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas
diferentes”.
É
também com esse apetite que Heráclito se serve da noção de logos numa faixa de significado bastante flexível. Tanto que em
alguns momentos logos pode ser
interpretado como o discurso mesmo que Heráclito usa para relatar aos seus
contemporâneos o entendimento de que há um princípio comum ou uma ordem comum
subjacente à diversidade das coisas. A noção de logos significa também a razão ou a estrutura íntima das coisas e
esse estado de coisas deve concordar com o relato (o texto poético-filosófico
que ele enuncia) que procura apresentar cada constituinte segundo sua natureza
e revelando-o tal como é. Pois bem, para o poeta estadunidense Ezra Pound,
literatura é a linguagem carregada de significado. Pound diz que há três formas
de carregar a linguagem: por meio da melopeia, da fanopeia e, finalmente, da
logopeia. A melopeia responde pelos aspectos musicais e rítmicos do poema; a
fanopeia cuida de representação imagética e/ou metafórica do texto; e a
logopeia, segundo o próprio Pound, é “a dança do intelecto entre as palavras”.
A logopeia é o discurso que para, ao mesmo tempo, sobre si mesmo e sobre a
coisa. A coisa, tal como é nomeada, revela a própria dança da logopeia
(pensamento): o movimento da razão estruturante.
T. S. Eliot
O
primeiro poeta a aparecer aqui, dos três já mencionados no início desse texto e
que denunciam em suas obras a contribuição heraclitiana, é T. S. Eliot
(1888-1965). Eliot publica em 1943 o longo poema “Quatro Quartetos”[2]
que tem como epígrafes dois fragmentos de Heráclito, a saber, o Fr. 2 “Embora a
razão seja comum a todos, cada um procede como se tivesse um pensamento”; e o
Fr. 60 “O caminho que sobe e o caminho que desce são um único e mesmo”. As
epígrafes em conjunto formam o logos,
a logopeia do poema de Eliot. Índices do pensamento de Heráclito (a unidade dos
contrários) e de seu estilo oracular afloram recriados (relativos desvios da
norma) em várias passagens dos Quartetos, por exemplo:
No imóvel ponto do mundo que gira. Nem só carne nem sem carne
(...)
Mas nem pausa nem movimento. E não se
chame a isto fixidez,
Pois passado e futuro aí se entrelaçam.
Nem ida nem vinda,
Nem ascensão nem queda
(...)
Não haveria dança, e tudo é apenas dança
(...)
O repouso, como um vaso chinês que ainda
se move
Perpetuamente em seu repouso.
Não apenas o repouso do violino,
enquanto a nota perdura,
Não apenas isto, mas a coexistência,
Ou seja, que o fim precede o princípio
(...)
Em meu princípio está meu fim
(...)
O tempo da cópula entre homem e mulher
E o das bestas. Pés para cima, pés para
baixo.
Comendo e bebendo. Bosta e morte.
(...)
O rio flui dentro de nós, o mar nos
cerca por todos os lados
(...)
T.
S. Eliot lida com grande liberdade com as questões heraclitianas, já que ele
responde como poeta ao pensamento essencialmente poético de Heráclito. Quando
uso o qualificativo “poético” tenho em mente essa ideia de Aristóteles: “A
poesia é mais fina e mais filosófica do que a história; porque a poesia
expressa o universal, e a história somente o detalhe”. Há diversos elementos no
poema “Quatro Quartetos” onde essas complexas interações com a filosofia de
Heráclito se revelam à flor da linguagem de Eliot, mas que isto fique reservado,
à parte, como insumo para uma pesquisa mais detida a ser realizada no futuro.
Octavio Paz
Já
no caso de Octavio Paz, a herança do discurso heraclitiano, se não se manifesta
expressamente por meio de citações, tem a qualidade de se entrelaçar
intimamente ao pensamento crítico e poético do mexicano, é como se verificássemos
mais uma confluência do que uma influência de Heráclito. Assim, apesar de um
dos seus livros mais conhecidos intitular-se O arco e a lira[3]
– menção direta à tese da unidade dos opostos que sustenta que há, subjacente à
aparente discordância das coisas, uma estrutura latente que não só as unifica,
mas que também as torna uma e mesma coisa –, Octavio Paz, ao longo das mais de
360 páginas do livro, vai se referir à Heráclito apenas duas ou três vezes. Mas,
na verdade, Heráclito está inscrito na própria dicção de Paz, a mera referência
nominal ao filósofo é secundária. Na abertura de O arco e a lira, o poeta se dispõe a nos apresentar as diferenças
entre poesia e poema, o resultado é um parágrafo inteiro que coleciona uma
série de enunciados estruturados a partir de oposições, isto é, a poesia é
sempre, ao mesmo tempo, algo e seu oposto, vejamos:
A poesia é
conhecimento, salvação, poder, abandono.
Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por
natureza; exercício espiritual (...) A poesia revela este mundo; cria outro.
Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso
à terra natal. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega
a história (...) Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma
superior; linguagem primitiva. Obediência
às regras; criação de outras (...). Jogo, trabalho (...) diálogo, monólogo. Voz
do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura,
sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida
(...) ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o
poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de
toda obra humana!
Vejamos
as passagens onde Heráclito é mencionado. No trecho a seguir, Octavio Paz
constata que a história do Ocidente superestima o aspecto da racionalidade
sobre a intuição e a percepção sensível, por isso, segundo o poeta “Mística e
poesia viveram assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída”. Paz
descreve assim os efeitos desse fato no homem: ele é um desterrado do fluir
cósmico e de si mesmo; e finaliza dizendo o seguinte: “(...) ninguém ignora que
a metafísica ocidental termina num solipsismo. Para rompê-lo, Hegel regressa
até Heráclito”. Nas últimas páginas da obra, Octavio Paz se detém uma pouco
mais no mestre obscuro de Éfeso, cito: “Na sentença de Anaximandro – as coisas
expiam seus próprios excessos – já está ali em germe toda a visão polêmica do
ser de Heráclito: o universo está em tensão, como a corda do arco ou as cordas
da lira. O mundo, ‘transformando-se, repousa’. Heráclito, porém, não apenas
concebe o ser como devir, mas faz do homem lugar de encontro da guerra cósmica.
O homem é polêmico porque todas as forças terrestres e divinas se encontram e
lutam em seu interior”. A visão heraclitiana se transfigura em Octavio Paz
assumindo tonalidades barroquizantes. O poeta mexicano tem outro livro cujo
título é revelador do impacto da tese da unidade dos contrários em sua aventura
estética e intelectual, trata-se da obra Conjunções
e disjunções. Os conectivos lógicos, conjunção (˄) e disjunção (˅), são
instâncias dos clássicos pares de opostos de Heráclito.
Haroldo de Campos
Ainda
que de maneira bastante pontual, Haroldo de Campos, o poeta concreto, também
dialogou com a tradição heraclitiana na poesia. Mas seu interesse se limitou à
tarefa de transcriar para a nossa língua alguns fragmentos do livro Sobre a Natureza de Heráclito. O fato de
o filósofo ter recebido injustamente o epíteto de “o obscuro”, devido às
qualidades poéticas de seus escritos, moveu Haroldo de Campos ao desafio da
transcriação desses excertos, já que, para o poeta concreto, a tradução de
poesia envolve um esforço de criação na língua de chegada tão intenso e poético
quanto o que foi requerido para a realização do texto em sua língua de partida.
Mais do que uma sombra esmaecida do texto original, a versão almejada por
Haroldo de Campos vai se postar em paralelo em relação àquela numa espécie de
espelhismo virtuoso. No limite, o original grego de Heráclito pode ser
considerado como uma tradução às avessas da obra transcriada pelo poeta
brasileiro, isto é, a transcriação alcança uma autonomia perante o texto
original. Pelo menos é o que pretende Haroldo de Campos que, como epígrafe para
a sua experiência translatícia, cita a seguinte máxima de Novalis: “O
verdadeiro tradutor... Ele deve ser o poeta do poeta”. O conjunto das
transcriações, que integra o livro A
educação dos cinco sentidos[4],
foi batizado como “Heráclito revisitado”, vejamo-lo:
aión
vidatempo:
um jogo de
criança
(reinando
o Infante
Infância)
ho ánax
o oráculo
em Delfos
não fala
nem cala
assigna
hélios
o Sol não
desmesura
(ó Eríneas,
servas de Dike,
justiçadoras)
hai psychaì /
psychês esti logos
almas farejando
no Hades
alma-logos
semprexpandir-se
eoûs kaì hespéras
lindes
de aurora
e ocaso a Ursa
e face à
Ursa o marco de Zeus
coruscante
físis
filocríptica
desvelos
do sem-véu
pelo velar-se
ho kállistos
kósmos
varredura do
acaso belo
cosmos
caleidocosmos
lixo (luxo) do
acaso
cosmos
pánta rheî
tudo riocorrente
Espero
que com esse apanhado, ainda que lacunar, de realizações parciais de poetas que
buscaram uma interlocução não apenas com a significação da filosofia de
Heráclito, mas, especialmente, com a materialidade mesma de sua linguagem
intrinsecamente poética – já que, inapelavelmente, é através dela que tal
filosofia se plasma e se deixa interpretar –, possamos reconhecer que Heráclito,
além de ser “figura de permanente interesse para filósofos” por se tratar de
“um pioneiro dos pensamentos filosófico e científico” (Edward Hussey), é também
de fundamental importância para a tradição da poesia universal e seus novos rumos
ainda a serem traçados.
[1] Trabalho
que fiz às pressas para a disciplina de História da Filosofia Grega do Curso de
Filosofia da UFRGS, 2013. Quando digo que “fiz às pressas” isso significa uma
confissão de incompetência, não sou aluno aplicado, pois tive uns três meses
para realizar o trabalho e acabei deixando para a última hora. Por isso as
lacunas e a ausência imperdoável, por exemplo, do nome de Jorge Luis Borges,
esse leitor rente de Heráclito.
[2]
ELIOT, T. S. Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
[4]
CAMPOS,
Haroldo de. A educação dos cinco sentidos.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
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