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Musil: o obsceno, o patológico e os desejos artísticos


Ronald Augusto[1]

Essas ligeiras considerações que submeto à apreciação do leitor são resultantes da leitura do ensaio “O obsceno e o patológico na arte” (1911) de Robert Musil[2], e o que se procura, através delas, é apresentar e analisar sumariamente os argumentos articulados por Musil para justificar a representação dos elementos obscenos, doentios e aparentemente pornográficos na arte. Cabe referir que a tradução utilizada para o presente trabalho foi realizada pela escritora e crítica Kathrin H. Rosenfield, de quem fui aluno na disciplina de Filosofia da Arte ao longo do segundo semestre do ano de 2014.
Em primeiro lugar podemos afirmar que Musil tem a noção de que a representação dos elementos obscenos, doentios e pornográficos na arte, além de ser algo que diz respeito à autonomia criativa, tem a ver ainda com uma espécie de terminação do artista em fazer uma inspeção radical nos âmbitos mais secretos do desejo humano, visando com isso uma compreensão mais desanuviada relativamente àquilo que a vida normal e cotidiana entende como chocante, repugnante e repreensível. A esse propósito, a metáfora empregada pelo romancista, segundo a qual esses elementos eventualmente censuráveis operariam um ferimento “no meio da pele alva esticada da página”, indica com perfeição como a figuração de tais assuntos exerce uma crítica importante nas convenções seja da sociedade, seja do sistema das artes e sua visão estética.
Na raiz dessas representações temos, por um lado, o ilícito (interdição), e, por outro lado, o prometeico (transgressão). Musil sugere que não se deve exigir uma perspectiva didática ou utilitária do tratamento artístico dos elementos obscenos, doentios e aparentemente pornográficos; o interesse artístico se entrelaça aos gestos e problemas humanos que conferem à arte parte de seu valor. Musil não recusa o ponto de vista da necessidade para a sociedade de conceitos tais como imoral, repreensível ou doente, pois isso, de algum modo, estabelece a base mínima dos regramentos e dos acordos sociais.
No entanto, para a arte, esses conceitos não são necessariamente negativos, haja vista que, para o artista, o que interessa é um precipitar-se na direção da compreensão dos variados aspectos da condição humana. Por isso mesmo Musil interpreta a arte como esse espaço onde são revelados sutis interações entre a normalidade e a estranheza, entre o erotismo e o pornográfico, entre o doentio e o sadio, enfim, na arte o trânsito entre essas oposições dá conta da complexa e, às vezes, interditada vida interior de nossos sentimentos.
Assim, o autor de O homem sem qualidades defende três possibilidades de afirmação da representação dos elementos obscenos, doentios e pornográficos na arte: (a) o obsceno e o doente, quando figurados pelo artista, deixam de ser o que eles são (o símbolo e a ficção ocupam lugar do verismo); (b) o amor (o interesse desinteressado) do artista por essas coisas é algo diferente daquele senso sério de realidade exigido na vida normal e na moral em sociedade (evoco o episódio de Francesca e Paolo, Inferno, canto V, onde Dante não esconde sua compaixão, sua amorosa solidariedade pelo destino do casal adúltero e sua condenação eterna); e (c) o obsceno e o patológico (pathos = paixão) têm, também na vida, seus aspectos positivos.
Robert Musil adverte também que representar o obsceno e o doente não quer dizer satisfazer desejos obscenos e doentios, sem mais, já que, de acordo com Musil, “não há outros desejos senão os artísticos que possamos satisfazer com arte”. O artista imaginado pelo escritor austríaco, confrontado com o problema da representação dos elementos obscenos, doentios e aparentemente pornográficos na arte, parece lembrar, embora de maneira muito tênue, o moralista imaginado por Nietzsche, isto é, o sujeito que entende a moral como algo a ser interrogado, um problema, algo que pode ser posto em questão. Para esse artista, assim como para Musil, o moralizar não soaria, portanto, como um gesto imoral?





[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com

[2] O austríaco Robert Musil (1880-1942) é considerado ao lado de James Joyce, Proust e Thomas Mann como um dos maiores escritores do século 20. Sua obra máxima, ainda que inacabada, é o romance O homem sem qualidades (1936).

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