Ronald Augusto[1]
O que se pretende aqui é
investigar e comentar que espécie de eu
ou de voz narrativa atravessa os
ensaios de Montaigne. De saída pode-se afirmar, por meio de uma leitura
comparativa, que nos Ensaios não
deparamos o mesmo tipo de eu (como
mecanismo discursivo) que, por exemplo, serve de instrumento tanto a Descartes
como a Agostinho para a consecução e apresentação de seus textos e problemas
filosóficos. Sob uma aparente similaridade, isto é, a de que nesses casos temos
filósofos escrevendo a partir da primeira pessoa do singular ou conferindo ao
pronome pessoal um estatuto mais dramático no que toca às condições de
possibilidade do conhecimento, enfim, sob essa virtual aproximação, cabe
estabelecer algumas distinções. Distinções estas que, de resto, vão demarcar o
que é irredutível a cada um desses percursos filosóficos.
Tendo em mente as
considerações do poeta T. S. Eliot que no ensaio Las tres voces de la poesía[2]
analisa as possibilidades expressivas da poesia a partir da concepção de que o
gênero admite três tipos de vozes, a saber, a voz lírica, a voz dramática, e a voz
épica, me pergunto se não seria pertinente relacionar essas vozes,
respectivamente, a Agostinho, a Descartes e, finalmente, a Montaigne? Antes,
porém, é preciso acompanhar a maneira como Eliot descreve o comportamento de
cada uma dessas três vozes nos processos expressivos e comunicativos da poesia.
A voz lírica representa o poeta que fala consigo mesmo ou com
ninguém; ela tem a ver com o solilóquio, com o monólogo confessional. E é nesse
sentido que se justifica a analogia da voz lírica com o eu (enquanto dispositivo narrativo) que põe em movimento as Confissões do africano. Com efeito, as
excruciantes confissões de Agostinho testemunhadas por Deus, representam um
humilde acerto de contas tanto da criatura consigo mesma, quanto com esse Ser inescrutável
que apenas se presta a ouvir o relato de tudo e de todos desde o Seu silêncio
eterno. Por essa razão também o clássico Confissões,
tal como a voz lírica, tem como audiência ou confessor efetivo menos ninguém (Deus) do que o sujeito mesmo
que faz a confissão.
A voz dramática representa o mecanismo utilizado pelo poeta com
vistas à criação de um personagem que tem seu próprio discurso e que, portanto,
tem a prerrogativa de afirmar coisas com as quais o poeta ele mesmo jamais se
comprometeria. O poeta inventa uma máscara que pode ser afivelada, isto é,
interpretada por quem quer que seja, pois, afinal de contas, ainda que o
personagem tenha algo dele, isto não significa que ambos se confundam em todas
as situações possíveis. Cada leitor de Descartes afivela essa persona que aqui se descreve debruçada sobre
a escrivaninha, ali é ludibriada por um gênio maligno. A argumentação de Descartes
exige que o leitor interprete esse papel virtual para que o desfecho da
história lhe pareça verossímil e, portanto, crível. Em certa medida as Meditações cartesianas se constituem em um
monólogo dramático de um personagem sem nome próprio, cujo objetivo é comprovar
sua existência na perspectiva de alcançar com isso uma verdade metafísica
necessária. E toda a tensão trágica dessa narrativa, desde os primeiros
combates do herói com o engano e com o autoengano, passando pela negação do
mundo exterior (pois às vezes o personagem se dá conta de que atravessa uma ficção
cênica), até chegar ao desfecho (espécie de chave de ouro) em que esse eu se enuncia como algo que pensa ou
algo existindo enquanto pensa; enfim, todo esse romance, que pode servir para
desentediar (como disse Descartes ele próprio a propósito das Meditações), tem, de fato, relação com a
voz dramática, pois o que subjaz à noção do trágico (a teatralidade) é um erro
de conhecimento que se traduz em erro de linguagem – o vacilo de interpretação fundamentando
uma afirmação que se faz a respeito de determinado estado de coisas.
Finalmente, a voz épica dá a ver o poeta se dirigindo
ou entretendo um auditório, trata-se de um narrador que sabe mais ou menos bem
com quem está falando. É uma voz notadamente pública que, por um lado, incita o
interlocutor e, por outro, se deixa incitar graças às reações e réplicas de seu
comparsa. A célebre imagem de Montaigne ocupado com o seu gato representa à
maravilha essa interação entre a voz épica e sua recepção. A imagem é a
seguinte: enquanto Montaigne está brincando com seu gato ele tem uma epifania e
se pergunta: “afinal de contas, sou eu quem brinca com o gato ou é ele quem
brinca comigo?”. Quem é o sujeito, quem é o objeto em tal situação? Como um pensador
do renascimento, Montaigne pressupõe em sua aventura epistemológica a
participação das coisas relativas ao precário, ao belo e, de resto, à hýbris – predicados constitutivos do homem –, no projeto vivencial e intelectual de
seus Ensaios. Em seu estilo não há
dissociação dramática entre o ego
scriptor e o autor empírico[3]. Conquanto
Montaigne afirme no prólogo ao seu livro que este o foi escrito para si mesmo,
é preciso frisar que, paradoxalmente, o título da nota diz mais ou menos o
seguinte “do autor ao leitor”[4]
e, além do mais, já na primeira frase do prólogo lê-se: “Eis aqui, leitor, um
livro de boa-fé.”. Ou seja, o autor se presta a um exercício retórico de
dissimulação. Na verdade, desde o início, Montaigne se revela profundamente
disposto à interlocução, ao debate votado à ação, e o leitor é convidado, tal
como o gato da reiterada evocação, não só a recompor os jogos de pensamento do
autor, mas também a jogar com ele desde a sua própria e razoável liberdade
interpretativa. Pela via oposta a de certos textos trabalhados até o limite da
presunção e nos quais ao leitor resta apenas repetir palavra a palavra o pensamento
do autor, dando a impressão de que a leitura resulta em uma variedade de
ventriloquismo, o estilo de Montaigne, ondulante e variegado, por seu turno,
provoca o leitor a emergir da platitude da leitura na medida em que tal
linguagem não lhe oferece respostas consumadas em relação aos problemas
apresentados. O conhecimento do que quer que seja não será encontrado nos Ensaios, mas fora deles, na ação sobre o
mundo ou nos intervalos (o olhar que se ergue das páginas do livro visando
excogitar algo) a que o leitor tem de recorrer frente às equações entre
irônicas e céticas (embora sempre congeniais ao vivido) de Montaigne.
Essa voz narrativa encarnada
num eu que é forma em clave épica e
também o mais transeunte e prosaico “homem humano” (Guimarães Rosa), voz plena
de tons e referências, dá ao leitor a impressão enganosa de que o método de Montaigne
é a fragmentação ou a dissolução estetizante de problemas filosóficos por meio
de um exercício de estilo. Talvez sejamos induzidos a pensar dessa maneira
devido à variedade dos temas de seus ensaios. Na verdade o que acontece é que a
cada ensaio nos deparamos não com um novo Montaigne, nem com uma nova persona de Montaigne, mas tão somente com
outra objeção ou com um novo movimento na tentativa de chegar mais longe na
investigação da complexidade dos problemas. E mesmo que aceitássemos a
suposição de que Montaigne tem grande inclinação à dispersão, poderíamos
determinar um traço de coesão nesse aparente descentramento, a saber, sua
filiação à tradição do pensamento cético em sentido amplo. Mas, de acordo com a
interpretação de Celso Martins Azar Filho[5],
o ceticismo montaigniano não é meramente reativo, no sentido em que talvez pudéssemos
encerrá-lo na convicção segundo a qual sua meta seria alcançar a suspensão
do juízo como panaceia filosofante, como se tal figuração alcançasse dar conta
do estilo cético com o qual Montaigne
tem pontos de contato. Celso Martins Azar Filho entende que nos Ensaios podemos reconhecer um chamado à
pesquisa e à constante experimentação dos seus resultados. Trata-se de um texto
em estado dubitativo positivo – provocador e disposto à investigação. Segundo o
comentarista, devemos nos acercar (jogar o jogo) da filosofia montaigniana,
porquanto seus ensaios (experimentos) exigem nossa ação e nosso engajamento de
modo a que essa situação nos permita acompanhá-lo de perto, quase como num
corpo a corpo entre contemplar e viver.
Assim, o estilo
literário de Montaigne, mercê sua marca renascentista, introduz na estratégia
incansável e algo esturricada do estilo cético, uma acepção menos rígida à interposição
da dúvida, isto é, a forma do ensaio dubitativo se comporta como um instrumento
de busca, e não apenas do conhecimento verdadeiro, mas de sua realização
prática.
Dentro dessa perspectiva do ensaio como experimento textual e vivencial em
movimento, julgo importante lembrar o que escreve Jeanne
Marie Gagnebin na palestra-ensaio “As formas literárias da filosofia”. Gagnebin
analisa a formas literárias ou os estilos de escrita no interior ou na sua
interação com a atividade filosófica. A este respeito ela cita uma passagem da Crítica da razão pura em que Kant se
pronuncia sobre as “tentativas de filosofar”. Diante de um projeto
arquitetônico (o filosófico) em permanente construção, “cujo edifício muitas
vezes é tão diverso e tão mutável”, Kant admite que o que se pode fazer é tão
só aprender a filosofar exercendo “o
talento da razão na aplicação de seus princípios gerais em certas tentativas
que se apresentam”. Sem a pretensão de corrigir o filósofo, poderíamos
acrescentar, tendo em mente as ideias de Gagnebin sobre as formas literárias da
filosofia, que aprender a filosofar
supõe ainda desenvolver o talento de um estilo literário, uma capacidade de
plasmar formas expressivas de pensamento: formas de linguagem. A filosofia
ensaística de Montaigne coloca em jogo uma exigência estética através da qual
se projetam investimentos reflexivos de variadas fontes, unindo a tarefa
artística e os problemas morais num texto polifônico que se reescreve na medida
em que se inscreve e se atualiza na vida prática.
Se quiséssemos prosseguir
usando a metáfora de um projeto arquitetônico para nos referirmos à construção
de um determinado pensamento ou edifício filosófico, no caso de Montaigne
poderíamos dizer que seu discurso ou narrativa filosófica tem alguma relação
com o labirinto. Ainda que para o senso comum a noção de labirinto envolva
acepções um tanto quanto depreciativas, ou seja, às vezes usamos, por exemplo,
o qualificativo “labiríntico” querendo indicar que algo é caótico, confuso e
sem uma direção ou um propósito. De minha parte, quero deixar claro aqui que
não encareço na figura do labirinto nenhuma dessas acepções, pelo contrário, a
noção de labirinto envolve projeto, construção, estrutura, e, para o bem ou
para mal, indica um recinto arquitetônico cujo objetivo é propor uma série de
dificuldades àquele que no interior de sua trama de salas e galerias se
disponha a achar a saída (a regra do jogo). Assim, Montaigne é o arquiteto
desse labirinto de ensaios, proponente de um jogo cuja “saída”, o conhecimento,
exige que experimentemos “todos os meios suscetíveis de satisfazê-lo”[6].
Montaigne parece sempre interessado em nutrir uma suspeição estética com
relação à razão; não é que no mais das vezes a razão não baste; não é isso. O
que acontece é que para Montaigne “a verdade é tão valiosa que nada devemos
desdenhar, capaz de nos levar a ela”. O grande ensaísta entende que através de
várias evidências a experiência cria a arte e o exemplo alheio indica o
caminho. Para Montaigne o caminho para a verdade é tortuoso porque tanto a
razão quanto a experiência assumem tantas formas que não sabemos qual escolher.
O filósofo não está de modo
nenhum determinado a fazer com que todo aquele que se aventure entre os muros do
seu conjunto de ensaios se perceba, de fato, perdido. Nestes exemplares em que,
no desenvolvimento do texto, Montaigne não cumpre o que o título aparentemente promete,
mais do que produzir uma armadilha para lançar o leitor na suspensão do juízo,
o que temos é a sua disposição de flanar ou perambular de modo a estabelecer
marcos para recorrências futuras relativas aos problemas morais e metafísicos
de que nos ocupamos. Montaigne age assim tendo em vista um mapa, um fio por
meio do qual seja possível conceber o percurso mais adequado pelo interior desse
projeto arquitetônico convivial, isto é, os Ensaios.
O que importa para essa voz épica – lato
sensu e de viés eliotiano – de Montaigne é que, em alguma medida, tanto escrever
(o jogo do ensaísta), quanto o investimento de leitura (a cargo da recepção que
tem o gato como metáfora) já são em si mesmos agir, proceder. Mas caso o leitor
dos Ensaios, por algum motivo,
delibere não se fixar num ponto ou se resigne pela não resolução de um dilema transfigurado
por Montaigne, então, esse leitor possível, estará justificado em seu
sentimento de permanência entre os muros de um labirinto. Para esse leitor
apressado dos Ensaios, que vai em
direção ao ceticismo como se estivesse condenado a se transformar
reiteradamente no que é, para esse leitor, Montaigne talvez tenha mesmo
construído um labirinto onde seu interlocutor provavelmente passará, não sem
algum prazer, de um recinto para o outro sem jamais saber em que ponto está.
De fato, talvez seja loucura
opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de acordo com a razão,
inclusive porque, como pensa Montaigne, somos muito suscetíveis às ideias e a
tal ponto que somos capazes de morrer por elas. Montaigne é irônico com relação
à noção de “defender uma ideia até à morte”. Podemos supor que para o
ensaísta-filósofo é melhor ser um cético vivo do que um convicto morto. A
ironia e a autoironia da estética de Montaigne – onde coerem teoria e ação – confinam
com a possibilidade de uma metafilosofia? Ainda que isso soe excessivo, não se
pode negar que o renascentista Montaigne põe em causa, por meio do ensaio
enquanto estilo literário, o quadro tão minuciosamente pintado pela filosofia,
isto é, nos convida tanto a um exercício de crítica em relação aos poderes dos
filósofos, como ao reconhecimento dos seus limites. Ouçamos Montaigne: “As
pesquisas e contemplações dos filósofos servem apenas de alimento para nossa
curiosidade. Têm razão quando nos apontam a natureza; mas de que vale tão
sublime conhecimento? Eles falsificam-lhe as regras e no-la apresentam com um
rosto pintado e tão sofisticado que mal a reconhecemos nessa variedade de
retratos de um mesmo modelo”.
Espicaçado com a crítica montaigniana
movida contra a variedade de retratos onde submerge o modelo, onde as
explicações varrem a coisa que se quer explicar, o leitor que abdica de fazer a
escolha não tutelada, conquanto seja provisória, pode mesmo se extraviar no
labirinto dos ensaios. Abandonar o caminho que talvez conduzisse à saída,
suportar a noção de que muitas vezes a sorte epistêmica está implicada na
razão, em fim de contas, aceitar a suspensão do juízo como resposta aos
problemas filosóficos, são considerações derivadas não apenas dos conteúdos
filosóficos apresentados nos escritos de Montaigne, mas antes de tudo são
representações inseparáveis do estilo do ensaio, enquanto forma literária e
experimento de metafilosofia.
Abro aqui um parêntese para
me deter um pouco mais no tópico do ensaio propriamente dito. O ensaio enquanto
forma literária seria o meio por excelência de exercício da disposição cética
de Montaigne ou, antes, de seu pensamento estético-filosófico de feitio mais
analógico? Montaigne considerava a forma ensaística como a combinação de
devaneio, meditação e análise. A propósito dessa questão que diz respeito à
tensão forma-conteúdo retorno às ideias de Jeanne Marie Gagnebin. Segundo a
pensadora em alguma medida, diferentes tipos de exercício de filosofia exigem
formas literárias diferentes para a consecução dos seus respectivos escritos
filosóficos. Mas isso também se relaciona a uma distinção de Kant sobre
diferentes maneiras de exercícios filosóficos, a saber, de um lado temos a
filosofia de mundo ou cosmo-política (Weltphilosophie);
e de outro lado, temos o discurso filosófico das práticas escolásticas
institucionais do ensino de filosofia (Schulphilosophie).
Assim, os estilos filosóficos da filosofia de mundo ou cosmo-política (Weltphilosophie), segundo essa noção,
tenderiam a ser diferentes dos estilos do discurso filosófico das práticas
institucionais do ensino de filosofia (Schulphilosophie).
O que está em jogo aqui é o seguinte: o pensamento, seja ele confessional,
dialético, aforístico, dramático, ensaístico ou analítico, é inextrincável das
formas expressivas que assume. Em outras palavras: aquilo que um filósofo diz/escreve (“conteúdos teóricos”) não
está ligado acidentalmente ao modo como
(“formas linguísticas”) esse filósofo diz/escreve.
Ampliando um pouco mais a
discussão na perspectiva de apurar certas determinações do discurso filosófico
e literário de Montaigne, vejamos agora algumas considerações de Theodor W. Adorno
acerca da forma do ensaio: “O ensaio, porém, não admite que seu âmbito de
competência lhe seja prescrito. Em vez de alcançar algo cientificamente ou
criar artisticamente alguma coisa, seus esforços ainda espelham a
disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar
com o que os outros já fizeram. O ensaio reflete o que é amado e odiado [...].
Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com
aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde
sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo,
um lugar entre os despropósitos”[7].
A natureza do ensaio parece ser antagônica àquela que caracteriza um discurso
filosófico típico ou convencional ou, ainda, consagrado pelo senso comum.
Quando Adorno, por exemplo, relaciona o ensaio e seu objeto a partir de
sentimentos como amor e ódio, desejo e repulsa, ele parece apostar na exclusão da
razão como insumo determinante na economia compositiva do ensaio. Dizer também,
de modo metonímico, que o ensaio abdica de começar sua tarefa por Adão e Eva,
significa dizer talvez que no ensaio não é preciso estabelecer os princípios
para tratar do que quer que seja. Entenda-se princípio tanto na acepção de início,
movimento primeiro que dá origem a algo, quanto princípio na acepção que orienta
ou ordena a existência de algo. O
ensaio não tem um destino, nem um propósito predeterminado. Fecho aqui o
parêntese e volto à ensaística de Montaigne.
Os Ensaios formam um vasto e cambiante autorretrato de Montaigne. No
prólogo que escreve ao leitor ele confessa: “... só o escrevi [o livro] para mim mesmo, e alguns
íntimos”, isto é, para uns poucos iguais. Mas os iguais ou os contemporâneos de
Montaigne se atualizam, hoje, nos leitores que se dispõem a manter viva a
interlocução com seu estilo dubitativo (a moral em perspectiva ou como algo a
ser questionado) fundado num discurso estético que mantém coesos a teoria e a
prática. Além disso, Montaigne afirma em relação ao que se dará a ver no livro,
ou seja, ele mesmo, o seguinte: “Prefiro que me vejam na minha simplicidade
natural, sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto”. Montaigne
pretende se autorretratar em sua “simplicidade natural, sem artifício de
nenhuma espécie”, no entanto busca alcançar tal resultado, isto é, revelar-se
de maneira não mediata, apelando a uma analogia com a arte da pintura, ou seja,
ele se serve de um modelo (no caso o autorretrato, um gênero de pintura) que
implica a transfiguração ou a refração do objeto representado. Se, por um lado,
não há razão nenhuma para acreditarmos que simplesmente pelo fato de Montaigne
ser o autor-pintor do próprio retrato que ele será capaz de realizar a
representação fiel de si mesmo, por outro lado, também é possível para nós,
como seus leitores e parceiros do jogo dos Ensaios,
conceder a ele a capacidade irredutível de se autorretratar, uma vez que não é
de interesse das partes envolvidas que esse jogo seja encerrado. Podemos supor,
então, que Montaigne é fiel a si mesmo.
[1] Ronald Augusto é
poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros,
Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012),
Empresto do Visitante (2013) e Mnemetrônomo (2014). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente para http://www.sul21.com.br/jornal/
[2] ELIOT, T. S.. Sobre la poesía y los poetas. Buenos
Aires: Editorial Sur, 1959. p. 89
[3]
Refiro-me aqui ao
conceito de Umberto Eco segundo o qual o autor empírico indica o sujeito civil
escritor, com nome e identidade, cujos dados biográficos às vezes são usados
como meio de acesso aos significados de sua obra.
[4] MONTAIGNE, Michel de. Ensaios /
Michel de Montaigne; tradução de Sergio Milliet. São Paulo: Nova Cultural (Os
pensadores), 1987. p. 7
[5] AZAR FILHO, C.
M. Método e estilo, subjetividade e
conhecimento nos ensaios de Montaigne:
[6]
OLIVEIRA, Armando Mora de;
NASCIMENTO, Carlos A. Ribeiro do; E SILVA, Franklin Leopoldo; et al. Primeira filosofia – aspectos da história da filosofia. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1990. p. 83
[7]
ADORNO,Theodor W. Notas de literatura I; tradução e
apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
pp. 16-17
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