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funil às avessas

O funil às avessas de José Weis

Ronald Augusto[1]

Em uma cena do filme Les Dames du Bois de Boulogne (1945) cuja direção é de Robert Bresson e o roteiro do poeta Jean Cocteau, um dos personagens afirma logo nos primeiros minutos da narrativa que “não há amor, apenas provas de amor”. Quando penso a propósito das coisas da poesia me sinto impelido a dizer algo análogo: não há poesia, apenas provas de poesia. Assim, a leitura de Cachorro não é uísque, de José Weis, em alguma medida dá corda a essa minha percepção.
Com efeito, José Weis parece concordar com minha tese de que a poesia não existe quando, por exemplo, define de modo paradoxal sua experiência como esse “Funil às avessas, [que] derrama pra cima” (a poesia) através dos seguintes predicados: a poesia não cura, “sempre dá uma curva”, ela é intocável, incansável. A poesia não existe, o que existe mesmo é a obra desse ou daquele poeta, “um troço sensível pra cachorro” – se quisermos adotar como explicação essa metáfora sem cerimônia de José Weis. A poesia precisa ser presentificada em um percurso poético-textual; ela deve se entranhar nos poemas do poeta. Quando pensamos em poesia devemos pensar na realidade da linguagem de alguns poetas. Isso sim é verificável, do contrário, como escreve José Weis, será “inútil decifrá-la”.  
A ideia ingênua ou romântica de poesia, isto é, a poesia antes do poema, é que está na base dos nossos primeiros exercícios poéticos: quando começamos a escrever tentando imitar uma imagem consagrada de poesia que se aproxima do escrever bonito, que lança mão de frases excessivamente adjetivadas, frases que são quase como o decalque das nossas emoções.
Entretanto, é contra essa clicheria sentimental relacionada ao fazer poético que, me parece, também investe a musa irônica e algo cética de Cachorro não é uísque. Embora José Weis não despreze as valências éticas do poema, sua relação com a atividade de poeta passa longe de qualquer aspiração a um eco épico. Sua poesia é mais da viola e do cavaquinho, isto é, tem mais relação com a triste alegria do samba e seus filosofemas do que com a trágica lira homérica.
A par dessas questões, José Weis constrói Cachorro não é uísque desde uma prática com a linguagem que lhe permite entender o poema, esse objeto verbal que visa a um efeito estético e a uma deriva semântica, não como um vaso sacrossanto que guardaria, como num passe de mágica, o fugidio instante poético. Suspeito que José Weis não se oponha de todo à noção de Octavio Paz segundo a qual o poema é essa máscara que oculta o vazio, em outras palavras, o poema é linguagem:

Na penumbra de um novo poema.
todo poeta se esforça
[...]
O texto precisa sair no seco

Toda a aventura da criação poética, todas aquelas definições que nutrimos a respeito do fenômeno poético devem ser testadas por via da linguagem. Tudo se dá, inapelavelmente, na superfície e no interior da linguagem.
Então o conhecimento da poesia é o conhecimento dos poetas (não da vida deles), aproximações a seus poemas. Verificações dos êxitos e dos fracassos de linguagem levados a efeito por eles. Em Cachorro não é uísque, José Weis, graças à sua ironia de viés e à sua consciência de linguagem, fortalece a noção de que a vida não explica diretamente o poema e o poema, tampouco explica a vida, pois nessa interação crítica há coisas que se revelam apenas no poema e que não podem ser rastreadas na vida do poeta. Por outro lado, os poemas de José Weis indicam que tem coisas que só cabem na vida do sujeito, coisas que nenhum símbolo dá conta de traduzir. Ou seja, tal como cachorro não é uísque, poesia não é vida. Não há poesia, apenas provas e não-provas de poesia.



[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/

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