O racismo e o taco de
beisebol
Ronald
Augusto[1]
Um modo de interpretar o
recente episódio ocorrido em Charlottesville envolvendo supremacistas brancos, esses
continuadores neonazistas e devotos do movimento Ku Klux Klan, seria evocar uma cena do filme Manhattan (1979), de Woody Allen. Na cena em questão um grupo de
intelectuais comenta a irrupção de um protesto de nazifascistas em NY. Diante
do sentimento de preocupação que predomina no grupo em vista do acontecido, um
dos integrantes argumenta que talvez fosse interessante encarar o fato com mais
humor, de maneira a promover um debate irônico que expusesse a estupidez de
tais ideias e atitudes racistas. Por sua vez, o personagem interpretado por
Allen, já sem paciência com o cinismo elegante do seu igual, responde que o
melhor argumento contra um sujeito de coturnos e cabeça raspada é mesmo um taco
de beisebol.
Esta breve anedota dá
conta, em alguma medida, de um certo estado de ânimo contemporâneo no qual
nossas reações a situações trágicas ou absurdas, implicadas nos gestos de
violento preconceito, têm merecido de nossa parte ou a indiferença risonha ou o
revide em proporção igual à agressão efetuada. No que me diz respeito acho
bastante razoável o argumento do taco de beisebol como forma de autodefesa em
relação a indivíduos e grupos que compactuam com concepções de supremacia étnico-racial,
sexual ou religiosa e que levam seus devotos e simpatizantes a realizar
linchamentos e enforcamentos de sujeitos que lhes parecem inferiores, anormais
ou repugnantes. Em casos como este, a última palavra não deve ser reservada ao riso
evasivo.
Contudo, ainda é cedo
para avaliarmos as consequências dos protestos em Charlottesville. A posição
indecidível e calhorda do presidente dos Estados Unidos é paradigmática a este
respeito. Não se pode afirmar, por exemplo, que estamos testemunhando o
ressurgimento da Ku Klux Klan ao
abrigo do nacionalismo histriônico do governo Trump. Inclusive porque os
encapuçados de D. W. Griffith nunca desapareceram de todo do contraditório campo
ideológico que constitui esta nação. Não digo que não seja algo preocupante,
afinal de contas, os violentos conflitos e confrontos inter-raciais neste país
fazem parte de sua dinâmica sócio-política e, portanto, de sua história.
Por outro lado, às vezes
acho que esse quadro é mais chocante para nós do que para eles, porque, ao
contrário do que acontece nos Estados Unidos no que se refere tanto ao racismo
quanto às formas de resistência a ele, no Brasil, denunciar os privilégios da
branquitude – que é um outro modo de representar o racismo institucional,
naturalizado e genocida em que vivemos –, denunciar a branquitude chega a ser
quase um crime de lesa patriotismo. Em nosso país abençoado por Deus o racismo
é sempre atribuído ao outro, ninguém se vê implicado no perverso preconceito
identificado com facilidade nos demais. Mesmo que o mito da democracia racial, irmão
siamês de nossa romanesca mestiçagem, há tempos venha fazendo água, no fundo
ainda acreditamos que, no concerto das nações, podemos tocar o primeiro violino
no quesito tolerância racial.
Por esta razão, o franco
racismo antinegro, quando se torna público fora das fronteiras do Brasil, desperta
tanto envolvimento e indignação da nossa sociedade e da nossa mídia. Ao
denunciar o racismo em outros países com tamanha presteza e dramaticidade, o
senso comum nacional acaba por reforçar, talvez inadvertidamente, a negação do
mesmo problema no interior de nossas relações sociais. Os limites aduaneiros
operam sobre o nosso interesse pela ferida do racismo de tal modo que a comoção
e os afetos resultam sempre assimétricos e seletivos. Tudo isto, não obstante a
imediata impressão de solidariedade, parece dizer menos respeito a nós do que a
eles. Nossa indignação soa meramente purgativa.
Acredito que a sociedade
em geral, tanto quanto os movimentos negros em particular estadunidenses têm
experiência histórica a respeito e saberão enfrentar o terrorismo renitente dos
supremacistas brancos. Enquanto isso, o racismo à brasileira, imbecil e cordial,
supõe que um sentimental pedido de desculpas resolve tudo. Pois persiste entre
nós a negação da discussão ou mesmo da mera menção ao racismo. Nosso racismo
institucional segue ofendendo sem ofender: o contínuo da estupidez. Em outras
palavras, se por acaso o preconceito venha a ser debatido, só o será em termos
que não agridam a branquitude. Os questionamentos vindos de grupos que não fazem
parte desse recorte são tachados, no mínimo, de equivocados. A branquitude se
jacta de ver o “quadro completo”, mas não consegue – ou acha que é
desnecessário – se enxergar a si própria. E é por esta razão que atrás do
clichê “o politicamente correto é muito chato”, usado também para refutar a
crítica às variadas formas de violência racial, geralmente encontraremos um
sujeito branco emboscado. É preciso colocar em cena o problema do branco.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha
(1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente
no blog www.poesia-pau.blgspot.com
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