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O trágico como vacilo de linguagem


O trágico como vacilo de linguagem
Ronald Augusto[1]



Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, afirma o seguinte: “Não se deve procurar indiferentemente o mesmo rigor em todas as discussões”.
Por outro lado, o desprezo total a uma medida necessária de rigor – lógico, e não rigor mortis – em nossos julgamentos e interpretações, pode levar a resultados, no mínimo, desagradáveis. Neste sentido, isto é, na perspectiva de validação de julgamentos e interpretações, talvez seja possível afirmar que a tragédia funda a necessidade da lógica; a necessidade de comprovação dos discursos, a comprovação das prescrições e das profecias. Essa é uma tese defendida por alguns autores, ou seja, podemos reivindicar a noção de que o “erro de linguagem” – um vacilo interpretativo, por assim dizer – está na fonte do princípio trágico. Dito de outro modo, o que o herói trágico pensa sobre o mundo e o que ele predica a respeito dos fatos em que se vê implicado nem sempre concordam, em última análise, com o estado de coisas no mundo. O fatalismo – o destino como condenação – não reside no acontecimento, mas na(s) palavra(s) pronunciadas(s) e/ou interpretada(s) erroneamente relativamente ao acontecido. Édipo, de certo modo, é um intérprete de indícios proféticos, de textos que se constituem em evidências, de testemunhos que comprovam e desmentem outros testemunhos.
O crítico Luís Tosta Paranhos defende a noção de que esse “erro de linguagem”[2] – uma hesitante interpretação em movimento – se presta como explicação do princípio trágico. Tomando como ponto de partida essa proposição, aventamos a possibilidade de ler por detrás ou na origem mesmo da tragédia a chance de uma tragicidade (na acepção de Paranhos o termo quer significar “qualidade específica do discurso trágico”[3]) como uma espécie de peripécia que, em alguma medida, enseja o exercício ou o jogo lógico e/ou investigativo a respeito de ações e acontecimentos, exercício este que, por seu turno, deve ser levado até as últimas consequências. O jogo, para o bem e para o mal, precisa chegar ao seu limite dramático. A tragédia pressupõe um ponto extremo em que não é mais possível ao herói voltar atrás, e é exatamente esse ponto que deve ser alcançado para que o trágico se realize.
“A fatalidade não está situada fora da ação do herói. Seu destino reside no desejo de liberdade de ação. Como, no entanto, esse desejo está fundamentado em erro de julgamento (válido ou não), transforma-se em fatalidade”.[4] Ou, ainda, “o fatalismo não reside no acontecimento nem na liberdade em si, mas na(s) palavra(s) pronunciadas(s) e interpretada(s) erroneamente”.
Para Foucualt[5], todas as ações e discursos de Édipo Rei/Tirano obedecem a um sistema de desafio e de prova. Transfiguradas esteticamente, práticas jurídicas de testemunhos e pesquisa de verdade informariam a tragédia, segundo o filósofo francês.  Édipo ao saber, por exemplo, que a peste que assola Tebas tem relação com uma maldição dos deuses em represália à conspurcação e ao assassinato, se sente desafiado a descobrir (a investigar quase ao modo forense) quem é o culpado por esses atos e, após descoberto, levá-lo ao exílio. Édipo, mais tarde, se reconhecerá a si mesmo como o autor de tais crimes e se verá na situação também desafiante de provar o juramente feito diante dos concidadãos tebanos.
Além do temor e da compaixão, Aristóteles considera a peripécia um elemento importante em sua caracterização do trágico. Para o filósofo a peripécia “é uma reviravolta das ações em sentido contrário”. Aristóteles oferece a título de exemplo a passagem de Édipo Rei onde quem vai até o tirano com o propósito de lhe dar alegria revelando quem era ele, acaba fazendo justamente o contrário. Aristóteles entende que esse movimento em direção contrária ao esperado tem relação com a noção de reconhecimento que, como a palavra indica, é “a mudança de desconhecimento ao conhecimento, ou à amizade, ou ao ódio, das pessoas [personae] marcadas para a ventura ou desdita”[6]. Aristóteles escreve que o mais belo reconhecimento é o que acontece, ao mesmo tempo, junto com uma peripécia. É o que se verifica em muitos momentos no Édipo Tirano. Vejamos esse trecho em que Édipo e Tirésias discutem essa relação entre peripécia e (re)conhecimento que serve para infundir tanto temor quanto compaixão:

TIRÉSIAS
O dia de hoje vai gerar-te e arruinar-te.

ÉDIPO
Mas como falas por charadas obscuras!

TIRÉSIAS
Mas tu não eras o melhor em desvendá-las?

ÉDIPO
Provoca, que descobrirás quão grande eu sou!

TIRÉSIAS
Foi este mesmo acaso que te destruiu.

ÉDIPO
Mas, se salvei essa cidade, não me importo. [7]

Édipo está prestes a experimentar em um mesmo dia a geração e a ruína. De um lado se defrontará com a verdade, o conhecimento de si que, por outro lado, representará a extinção de si mesmo, sua morte mais moral do que corpórea. A rede cerrada do jogo de desafio e prova que funcionam como instrumentos de afirmação da grandeza e do caráter arrojado do herói, vão se converter nos meios de sua aniquilação.
Como escreve Aristóteles, um reconhecimento com tal intensidade, imbricado a uma reviravolta desse tipo no entrecho dramático, acarretará pena e temor na audiência. Da imitação de ações caracterizadas por esses traços é que provém a beleza exasperante de tragédias como Édipo Tirano/Rei.



[1] Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do site http://www.sul21.com.br/jornal/  
[2] PARANHOS, Luís Tosta. Orfeu da Conceição: tragédia carioca. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p. 27

[3] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit p. 17

[4] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 26

[5] FOUCALUT. A verdade e as formas jurídicas [Xerox]. p.31
[6] A poética clássica / Aristóteles, Horácio, Longino; introdução por Roberto de Oliveira Brandão; tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna – 6ª edição – São Paulo: Cultrix: 1995. p. 30-31
[7] SÓFOCLES (496 a. C.- 406-5 a. C.). Édipo Tirano: Sófocles. Tradução Leonardo Antunes. São Paulo: Todavia, 1ª edição, 2018. pp. 54-55

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