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Entrevista ao Parêntese do Matinal Jornalismo


salvador 1989



porto alegre 2022



Luis Augusto Fischer, escritor e crítico literário, me chamou para essa entrevista que foi publicada originalmente em Parêntese, página cultural do diário Matinal Jornalismo, segue o link: https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/entrevista/ronald-augusto-poesia-a-serio/

E para os obstinados seguidores do poesia-pau reproduzo aqui o diálogo.

 

 

Luis Augusto Fischer - Uma antologia aos 61 anos de idade deve ter um peso grande, por ser uma revisão de percurso já largo. Como foi organizá-la? Fácil? Difícil?

 

Ronald Augusto - Os 61 anos é que são relativamente pesados.  Essa antologia, a primeira que faço, foi um trabalho bem tranquilo de ser realizado. Sou bastante relaxado com essa coisa de ter uma imagem ou um nome a zelar. Não levo a sério a ideia de obra, nem a fidelidade aos significados, seja no que tange a esse ou aquele poema realizado, seja no que diz respeito ao que o sistema literário supostamente espera ou cobra de mim. Quando fiquei sabendo que meu nome havia sido escolhido para fazer parte dessa coleção do IEL dedicada a autores negros, me dei conta de que eu não tinha mais nenhum livro inédito (de poemas) na gaveta. Então a solução foi organizar uma antologia. A antologia é despretensiosa, fui folheando meus livros e separando poemas a partir do critério da diversidade de projetos de linguagem ou das múltiplas experiências discursivas que tenho realizado.  Não são os melhores – nem os piores – poemas que escrevi.

 

LAF - Esta antologia cobre a tua produção impressa apenas a partir de 2004, ficando de fora o material dos anos 1980 e 1990. Por quê?

 

RA - Apenas porque a produção dos anos 1980 e 1990 está enfeixada no livro Cair de costas (2012).

 

LAF - Na tua geração de poetas, foi meio inevitável lidar com duas forças, creio: uma, o poema breve, personificado talvez na produção da dita “Geração mimeógrafo”, muitas vezes em busca ou do sorriso do leitor no poema-piada; a outra, a força da canção popular, que absorveu uma parte considerável da energia criativa do campo poético. Faz sentido para ti essa equação? Como foi lidar com isso, no teu percurso formativo? Que saídas a tua poesia foi encontrando?

 

RA - Ainda que em termos geracionais eu tenha dialogado lateralmente    estreitamente eu não diria – com essas duas forças, inclusive porque também me interesso por música ou letra de música, não cheguei a me alistar nesses movimentos.  Ao invés de Leminski, me deixei levar mais pelos poetas negros que passei a conhecer em meados dos anos 1980, graças ao Oliveira Silveira. Um pouco de maneira anacrônica eu me senti muito mais atraído pela poesia concreta e seus desdobramentos, como por exemplo, a poesia visual ou intersemiótica, do que pela turma do desbunde marginal-tropicalista. Felizmente isso também passou. Ainda gosto das experiências da vanguarda, mas não vejo mais sentido na realização de poemas desse tipo. A radicalidade de tal poesia acaba sendo rebaixada quando é repetida como mero virtuosismo de estilo. A ideia desse pessoal foi chegar num limite. Tentar dar continuação, dar consequência a isso me parece que é cair no jogo autocentrado das citações.

 

LAF - Qual o papel da tua formação profissional em Filosofia sobre a tua produção poética e sobre a tua atividade crítica?

 

RA - Em relação ao meu trabalho com poesia a formação em Filosofia não exerceu – ou não exerce ainda – influência nenhuma. Já com relação ao meu trabalho com a crítica literária ou com a reflexão teórica sobre poesia, sim, a disciplina filosófica foi fundamental. Inclusive, acabo de lançar meu terceiro livro de crítica literária, o Crítica parcial, publicado pela editora Ogum’s Toques Negros.  Meus ensaios não são poéticos. Mas gosto muito de dizer algumas coisas sobre a relação entre literatura e filosofia. Pretendo estudar mais e, se possível, escrever algo a propósito um dia desses.

 

LAF - Como tu concebes o leitor, a dimensão da recepção, ao produzir poesia: ele é um inimigo a ser enfrentado? É um aliado a ser conquistado? Nada disso? Tanto faz?

 

RA - O leitor é um interlocutor.  E esse interlocutor a gente nunca sabe direito se é um aliado ou um inimigo. Não pretendo conquistá-lo, nem dar-lhe as costas. E ele tem de se haver com os textos e ponto final. Não tenho o menor sentimento de comiseração em relação ao leitor. Ele que se vire. Com toda sinceridade eu não escrevo poemas pensando nesse ou naquele leitor. O leitor é uma figura cambiante.  O leitor sempre não será mais aquele.

 

LAF - Tua poesia carrega, muitas vezes, um tom de deboche contra poetas e escritores que tu consideras fracos, ou irrelevantes, ou nefastos, às vezes explicitamente, como “curiós de apartamento” ou “poetas de melos melífero”, noutras vezes como uma sombra sem contornos claros, como o “viram evangélicos para financiar publicação de livros”. Por quê? É um bom combate esse?

 

RA - Acho um bom combate porque as relações de prestigiamento e apagamento no sistema literário são muito corruptoras, elas corrompem nossa capacidade – ou nossa vontade – de julgar.  Os elogios recíprocos entre os pares são tão reiterados, a sala de estar da literatura é tão zelosa de um fair-play de fachada que a gente acaba tolerando as maiores imposturas. Se alguém critica esse estado de coisas é tachado de rancoroso ou invejoso. Se eu não me levo a sério na fila do pão e nem me interessa ter um nome a zelar, como é que eu poderia respeitar tanto compadrio, tanta literatura que salva? Eles que tratem de cuidar de suas reputações e carreiras.

 

LAF - O tema da condição negra, da consciência de ser uma pessoa negra no Brasil, veio para o primeiro plano do debate letrado no Brasil, nos anos mais recentes. Como te parece esse debate? Era o que um poeta e intelectual desde sempre envolvido com essa dimensão, como tu, imaginava? Desejava? Teu poema “Ponências adventícias” apresenta a situação como um dilema – ele será insolúvel?

 

RA - Estamos vivenciando uma onda – em nossa bolha apenas, diga-se – de discursos ou posturas antirracistas. Já escrevi em algum lugar que é preciso não se iludir com certas situações que parecem ser decorrência do bordão “representatividade negra importa”, tais como, mais participantes negros no BBB, o interesse das grandes editoras por literatura antirracista, a Maju Coutinho no Fantástico. Simbolicamente esses fatos ajudam. Meu questionamento é o seguinte: quando a luta antirracista e as mudanças desejadas chegarão de fato no sistema judiciário, na saúde, na violência policial contra jovens negros, na violência contra mulheres negras? Talvez o racismo tenha sofrido alguns golpes na literatura, no entretenimento televisivo, na moda, na cabeça de influenciadores digitais, na mentalidade de progressistas, entretanto, o racismo segue firme e não faltam episódios para comprovar que além das margens do círculo das pessoas sensíveis e informadas, a realidade não é tão promissora. “Ponências adventícias” é um poema sem solução para uma situação (ainda) insolúvel.

 

LAF - São poucos teus poemas com algum viés narrativo (e abundantes os poemas com temperamento ensaístico, opinativo). Mas são momentos preciosos, como “De passagem considerou um quadro da vizinhança” ou “Dois do dois Olomí”. Por que são poucos?

 

RA - Talvez sejam tão poucos só no conjunto da antologia. Em meu livro Empresto do visitante (2013) ou no Entre uma praia e outra (2018) há muitos com essa característica. 

 

LAF - Que poetas e pensadores de poesia tu deixaste de levar em conta, no percurso? E quais deles se mantiveram como interlocutores importantes ao longo do tempo?

 

RA - Os mortos que se mantiveram: Manuel Bandeira, João Cabral, Oliveira Silveira, Arnaldo Xavier, Ezra Pound, Dante, Octavio Paz, Orides Fontela, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Os que deixei de levar em conta: Cecília Meireles, Antonio Candido (não sou um leitor obstinado dele), Harold Bloom, Carlito Azevedo (não me arrependo), Manoel de Barros (idem), Umberto Eco (li poucos livros, grande déficit). E de filósofos franceses pós-modernos mantive uma distância segura.

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