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Irmãs siamesmas?

 



Ponciá Vicêncio e Conceição Evaristo, irmãs siamesmas?


[publicado originalmente em https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2024/04/conceicao-poncia-cluvi36l401d5012jz8r8e0gs.html]


Ronald Augusto1


Proponho aqui uma leitura que admite a seguinte premissa: há, de um lado, a pessoa civil Conceição Evaristo e, de outro, a personagem Ponciá Vicêncio, entre ambas, como que mediando e interpretando as conjunções e disjunções dessa relação menos real do que ficcional, emerge o ego scriptor, isto é, essa coisa que, na ausência de melhor definição, poderia ser referida como o agente de uma poética, algo que existe ou que acontece apenas quando o processo narrativo se atualiza em linguagem.

Na introdução à obra, Falando de Ponciá Vicêncio..., Conceição traduz essa ideia como “o ato da escrita”. O ego scriptor de Conceição Evaristo funciona como uma entidade que existe apenas enquanto performatiza um discurso estético-literário. O agente do ato da escrita existe no imediato fazer. Enquanto faz linguagem ele se faz a si mesmo: a esse ego scriptor só importa o durante. Antes e depois, são categorias nas quais o ato da escrita não se enquadra. Vejamos como a escritora considera esse momento crucial da experiência poética em que sua condição empírica como que se se transforma em outra coisa: "Resolvi então ler a história da moça. Ler o que eu havia escrito. Veio-me à lembrança o doloroso processo da criação que enfrentei para contar a história de Ponciá". Evaristo, então, confessa que muitas vezes o choro da personagem se confundia com o dela "no ato da escrita".

Não temos conhecimento sobre o que significa no processo de criação o que a escritora identifica como “doloroso”. Por que, afinal de contas, é doloroso? Será, talvez, porque o agente do ato da escrita – que não é nem propriamente Conceição Evaristo, nem Ponciá Vicêncio – acaba revelando a existência de uma disjunção efetiva entre elas? Ou que elas, ao fim e ao cabo, não formam uma unidade? A bem da verdade, é possível que nenhum desses três seres venham um dia a se encontrar de modo seguro. O choro da personagem, portanto, não se confunde com o da autora em todas as situações possíveis.

A relação quase inextrincável entre Conceição e Ponciá, reiterada a ponto de me fazer lembrar a palavra-montagem siamesmas (Augusto de Campos a propósito de sua relação com o irmão Haroldo de Campos inventou o termo siamesmos), indica uma outra forma de identificação ou de semelhança que parte da recepção, a partir do conceito de literatura negra, estabelece entre o autor empírico e a voz do poema ou o narrador-personagem romanesco. Quando Conceição Evaristo autografa, ao modo de um ato-falho, seu relato como Ponciá Vicêncio, o que estamos testemunhando é, em alguma medida, a vitória da noção segundo a qual a chamada autoria negra se trata de uma literatura por meio da qual o leitor se depara com a verdade crua das vidas negras encarnadas em texto. Temos assim o conceito de escritor negro e a obra realizada como coextensividade de sua presença empírica no mundo. Literatura como imediato sucedâneo do real. E o leitor, enquanto personagem implícito da narrativa ou das imagens do poema, aspira a enxergar-se a si mesmo no espelho da linguagem que, mais ao fundo, parece também enquadrar um trecho da experiência social.

Ponciá Vicêncio é uma personagem de ficção que acha sua justificação nos transes e prazeres surgidos da tensa interação entre Conceição e a outra – algo que se faz como ato da escrita. Conceição e seu ego scriptor aqui e ali litigam pela autoria de Ponciá. Ponciá Vicêncio, num primeiro momento, é salva por Evaristo do sumidouro da vida empírica quando rememorada, quando reinventada, mas pouco a pouco o agente do ato da escrita converte Ponciá numa metáfora, arrancando a moça do parentesco com Conceição Evaristo.

Conceição Evaristo e seu ego-scriptor se imiscuem e se dissipam na personagem Ponciá Vicêncio. Ponciá mimética, molda em barro a figura do avô de braço cotoco; e pequena encolhe o bracinho performando a linguagem corporal do avô, ou como se fosse o receptáculo para o espírito do antepassado. Ponciá investe na introspecção, no discurso íntimo, involucrado. Ponciá às vezes, dizia coisas que ele [o marido] não entendia. (…) Uma noite ela passou todo o tempo diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e não respondia. Ele teve medo, muito medo. De manhã, ela parecia mais acabrunhada ainda. Pediu ao homem que não a chamasse mais de Ponciá Vicêncio. Ele espantado perguntou-lhe como a chamaria então. Olhando fundo e desesperadamente nos olhos dele, ela respondeu que ele poderia lhe chamar de nada”.

Ponciá Vicêncio é sequestrada pelo ato da escrita e aos poucos começa a incorporar os vezos de (ou da) narradora que lhe empresta tanto as possibilidades como os limites da existência de uma personagem de ficção. A introspecção faz de Ponciá objeto do ego scriptor de Conceição Evaristo. A introspecção é metalinguística: o personagem-ser de ficção, como metáfora da narradora Conceição Evaristo, segue abrigado entre as capas do livro e enquanto dure a leitura. Sua existência além das margens onde o papel é cortado não se desdobra na vida prática da autora, mas apenas na esperança e no desejo do leitor que não aceita o desaparecimento de Ponciá ou o próprio desaparecimento no momento em que a narrativa se encerra e volta à estante para se transformar em um volume entre outros.



1Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Mestre e doutorando em Letras na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) À Ipásia que o espera (2016), O leitor desobediente (2020) e Tornaviagem (2020).


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