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cidinha, leia só pra mim!


cidinha da silva, salgado maranhão, conceição evaristo e eu, juiz de fora, 2008


O século 19 é o momento onde o leitor, como diz Walter Benjamin, assume o seu “papel de cliente”. Em outras palavras, temos um mercado editorial que se expande e que identifica neste segmento humano tanto um público potencialmente fiel como uma classe de interlocutores que por diversos modos dará continuação às produções da série literária. Talvez por isso mesmo, não obstante a existência de grandes poetas (Baudelaire, Rimbaud, Poe, Cruz e Sousa...), a prosa tenha se consagrado como o gênero por excelência do período. Com efeito, desde então o tempo vem provando que os prosadores têm uma noção mais ou menos clara da clientela a que servem, ao contrário dos poetas que, no se disporem a apresentar sua identidade como “a voz” por detrás da linguagem, mesmo assim costumam apreciar mais o solilóquio do que qualquer outra coisa. Ou seja, o leitor lhe parece uma entidade excessiva ou um mal necessário com o qual ele tem de se haver muito a contragosto já que, à revelia da sua vontade, o texto só se completa no instante da leitura. Assim sendo, para o poeta, pouco importa quem é e como reage esse leitor frente aos seus estímulos. O poeta o despreza por secundário, pois do seu ponto de vista o que está em jogo, em primeiro lugar, é o sucesso estético e não comunicativo do poema.

Modelo do prosador que por assim dizer “sabe com quem está falando”, Machado de Assis, por exemplo, se dirige o tempo todo ao seu divino leitor, dá-lhe vivos piparotes. Chega ao requinte de, eventualmente, e num gesto contraproducente (no sentido em que põe em causa a noção hoje comum de que o cliente sempre deve ser bem atendido) acordar o leitor da hipnose romanesca, frustrando-lhe o gozo da fantasia refinada, em relação à qual se sente seu beneficiário natural. O leitor é sacudido em sua expectativa de que fará parte de um pacto comunicativo sem ruído, pensado de maneira a apenas ratificar sua inteligência de receptor privilegiado. Machado não atende à piscadela de olhos desse letrado indeciso entre o Império e a República. O leitor é trapaceado, mas esta é a regra do jogo e da ginga machadianas. Machado de Assis re-inventa o (seu) leitor formando-o, ou melhor, temperando-o na ironia e na acídia da metalinguagem. O romance não é mais aquele.

Pois essas reflexões a propósito dos flertes baudelairianos e da capoeira machadiana entre o prosador e o leitor, começaram a me ocorrer em parte durante a leitura de algumas narrativas de Cada tridente em seu lugar e outras crônicas (Instituto Kuanza, 2006) de Cidinha da Silva. Vale lembrar: embora seu trajeto textual se componha de diversas obras, a autora faz com esse livro a estréia nos domínios do propriamente literário. É verdade, por outro lado, que Cidinha publicou mais recentemente outro conjunto de textos (Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor? Mazza Edições, 2008) que escapa também da área onde seu nome e seus trabalhos intelectuais se tornaram anteriormente mais conhecidos: Cidinha é historiadora de formação e pesquisadora em educação, raça, gênero e juventude. É autora de artigos e ensaios publicados no Brasil e no exterior em que aborda esses mesmos temas.

Os dois livros mencionados de Cidinha da Silva que buscam expressamente a pegada mais literária são, no entanto, bem diferentes. O último, uma reunião de contos, permanece mais rente à tradição dos prosadores que escrevem sabendo que terão uma audiência predisposta a acompanhá-lo, inclusive porque o uso da metáfora dando conta de alguém que pretende “bater o tambor” sugere um chamamento, uma advertência, ou no mínimo um pedido de atenção a outrem. Por outro lado, Cada tridente em seu lugar..., constitui um apanhado mais híbrido de formulações textuais. Não obstante seu aspecto um tanto indecidível — tanto que a autora chama mesmo algumas peças de crônicas, gênero em constante vir-a-ser — não há dúvida de que se trata de prosa da melhor espécie. É isso, mesmo: prosa. E sem complexo de inferioridade com relação à poesia. Prosa poética, proesia, poema em prosa, etc., nada disso! Mas Cidinha paradoxalmente não bate tambor nesta obra inaugural. Ela não se deixa levar nem pelo solilóquio (característico do poeta) nem pela garantia de um público cativo (cuja continuidade tende a tornar a relação entre o prosador e o leitor um tanto corruptora).

Não obstante a contemporaneidade dos temas de Cada tridente em seu lugar e outras crônicas, a saber, o multiculturalismo, o homoerotismo e o politicamente correto — felizmente aqui, ainda que com alguma timidez, sendo objeto de questionamento —, Cidinha parece optar por um registro discursivo mais afeito ao negaceio e ao negativo com parcimônia; ouve-se uma voz átona, e até certo ponto indireta. Um pervagar ágil, não cerimonioso, pelas ficções de gênero, de raça e cultura do nosso pensamento presente. Uma enunciação a meia voz. Ou seja, por de trás da sua prosa temos um escritor e não um performer falando a plenos pulmões das questões ideológicas do nosso tempo. Exemplifico. No texto “Xena e Maria Bonita” Cidinha da Silva investiga e ironiza as razões e os contra-sensos das pessoas que acham que “bicho também é gente”, que usam os animais para compensar lacunas afetivas ou que tratam essas “criaturas” como crianças mimadas, etc. Notar no trecho a seguir a feliz solução trocadilhesca incrustada na situação a propósito da antinomia entre os conceitos de “selvagem” e “doméstico”:

E quando o bicho fica olhando o casal transar ou se imiscui no meio dele? Sente ciúmes. Reclama do carinho que uma pessoa faz na outra. Grita que também quer. É estranho! Se é pra fazer um negócio pan-sexual que seja pelo menos com outras pessoas. Às vezes, aquilo que prometia ser uma noite de sexo selvagem é obliterado por um animal doméstico.

Recentemente, num debate com outros escritores tive a oportunidade de ouvir a autora lendo seus textos. E nesta arte Cidinha encontrou a música da sua linguagem. Desconheço, hoje, um outro escritor que leia tão bem e com tanta elegância o seu próprio texto quanto Cidinha da Silva. Acho que essa experiência é que me lava a dizer que ela almeja falar com um leitor de cada vez. Não para melhor convencê-lo do que quer que seja, mas para por meio desse “particular” solicitado, no detalhe, mostrar-lhe feito Ismael Silva o canto sempre renovado do seu aprendizado. O saber do samba. Uma crença corpórea na voz lírica reprisando o rito da transmissão oral num mundo onde tudo se tornou simulação, começando pela linguagem. Leio alheio Cada tridente em seu lugar e outras crônicas, e sou outro porque agora me leio: sou eu-Cidinha lendo para mim, e suas palavras prestam escuta ao meu silêncio. Porque a atenção, devotada a quem quer que seja, é hoje uma faculdade que não pode ser desperdiçada.

Através da conquista dos seus meios expressivos, Cidinha revela o afeto que não falha na conquista da confiança de um leitor desejoso de ouvir o narrador empregar também o tom à boca pequena. O drama de cada pessoa e o seu melos re-encenados na tranqüilidade do mais íntimo do leitor-colaborador, o contrário da afirmação concludente, essa subjetividade que se aplica em ser linguagem, que se publica às custas de uma linguagem que é tempo, reiteração: o que cabe à literatura. Cidinha, eu peço bis.

Comentários

Vissungo disse…
Salgado Maranhão na parada? E eu nem tava lá para abraçar o cara!
Mundo grande!

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