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em resposta a uma solicitação feita por edson cruz



1) Edson Cruz: o que é poesia para você?

Ronald Augusto: Não faz muito tempo eu tinha muitas certezas a respeito desta questão. Hoje, tenho não sei quantas dúvidas. Ainda acho que o conceito de invenção pode vir a colaborar numa eventual definição que se ensaie a propósito do gênero, mas já não tenho um apetite tão grande para, digamos assim, me solidarizar de modo indiscriminado com os adeptos da invenção. Aqui e acolá a todo instante se publicam livros que pretendem reunir o melhor da invenção surgido na última estação. Em poesia invenção virou commodity. Ou bolha especulativa. Mas, poesia não é apenas invenção. Em muitos poemas velhos a beleza está mesmo nessa condição do texto que envelheceu onde podia envelhecer. Em poesia a reiteração talvez seja até mais valiosa que a invenção. Uma resposta mais objetiva à pergunta poderia ser proposta nestes termos: não sei, eu escrevo poesia na perspectiva de que cada poema realizado possa levar acesa em seu bojo essa questão.

2) EC: o que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

RA: A pergunta incita em cada um de nós o desabrochar de uma figura nefasta: a do conselheiro (hoje em dia já temos uma variação kitsch: a do facilitador). A coisa mais importante a fazer é a seguinte: se o iniciante perceber que não tem jeito para coisa, o melhor é desistir logo. Se a pessoa não atrapalha ou não empata a vida dos outros, é certo que deixará um belo legado. Mas, se o iniciante, antes de mais nada, aprendeu a ser um verdadeiro leitor, então ser poeta ou não, para todos os efeitos, tornar-se-á irrelevante.

3) EC: cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

RA: Os poetas: Manuel Bandeira, Dante Alighieri e Ezra Pound. Quanto aos textos de referência para o meu trabalho poético, cabe uma observação. Citarei textos de intervenção crítica produzidos por poetas-críticos, pois está implícito, me parece, no item relativo aos poetas de minha predileção que o convívio com suas obras poéticas foi — e ainda é — decisivo do ponto de vista do aprofundamento meu artesanato. E como situo o meu trabalho também dentro da perspectiva do poeta-crítico, acho importante evocar aqueles textos que me ajudaram a desenvolver uma consciência de linguagem e uma visada menos emocionada em relação ao poema, são eles: Intinerário de Pasárgada de Manuel Bandeira; os ensaios de Ezra Pound (reunidos em dois livros, ABC da Literatura e A arte de poesia); e, por fim, a crítica ensaística dos poetas concretos, inclusive o que depois vieram a produzir já na condição, por assim dizer, de ex-concretos — e para não ficar devendo uma referência cito, deles, Haroldo, Augusto e Décio, a Teoria da poesia concreta (textos críticos e manifestos, 1950-1960).

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Confira em http://sambaquis.blogspot.com/ além dessa mini-entrevista à queima roupa que concedi ao Edson, uma série de outras com poetas como Augusto de Campos, Horácio Costa, Ricardo Aleixo, Ricardo Silvestrin, Virna Teixeira...

Comentários

Anônimo disse…
gostei das tuas palavras.
Juliana Meira disse…
legal, Ronald!
abraço
Suzana Mafra disse…
Dei uma olhada no blog e me encantei com a forma com que escreves os artigos. Parece que os escreves para meu entendimento, ou seja, sou sua leitora ideal.
Lembrei-me de onde conhecia os livros da Eblis. Foi durante o curso de escritura que fiz com o Manoel Ricardo de Lima. O gato e o estilo da marca me lembram a Gato Maltez (editora portuguesa).
Ainda não li teu livro, está me esperando - não no assoalho duro - no macio do travesseiro. Assim tem sido ultimamente devido a falta de tempo. Hei de enviar um comentário sobre a leitura. Até mais.
Abraço

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