Pular para o conteúdo principal

quem é o cara?

arthur bispo do rosário (1909 ou 1911-1989)

A motivação primeira de quem faz um curso ou oficina de criação textual é muito simples: o intuito é o de averiguar a real qualidade dos escritos que talvez há muito tempo o nosso iniciante venha fazendo em segredo e com certa vergonha, como se cagara, para lembrar a metáfora de João Cabral de Melo Neto.

Esse ímpeto é mais poderoso do que, por exemplo, ampliar os conhecimentos sobre a arte da poesia. Enfim, a maioria quer saber se têm jeito pra coisa. Se o que escreve presta ou não. Infelizmente, não há resposta cabal para essa angústia.

Primeiro porque, como afirma W. H. Auden, o percurso textual do verdadeiro artista denuncia um progressivo senso de dúvida. Isto é, quanto mais experiência ele adquire mais incerto o nosso herói se sente com relação à qualidade e ao alcance do seu trabalho. Mesmo a palavra do “ministrante” (expressão terrível), não será inteiramente de confiança. Muitos autores consagrados falharam na avaliação de sujeitos que iniciavam suas carreiras literárias. O mergulho no acervo da tradição e a rivalidade virtuosa que se estabelece entre os iguais potencializam o sentimento de incerteza em relação a nós mesmos e ao alheio.

E, segundo, porque a prerrogativa de tal aferição, fica a cargo da recepção (o sistema literário, no nosso caso) e do tempo. A recepção às vezes é perversa. Há uma dialética um tanto tensa entre os interesses dos grupos envolvidos, as contingências históricas e o transcurso mais demorado do tempo onde as coisas se decantam.

Dois exemplos relativos à difícil avaliação da qualidade de um trabalho artístico: Kafka e Arthur Bispo do Rosário.

O primeiro pediu para que depois de morto seus papéis fossem queimados. Não foi atendido. O artista brasileiro, um indigente negro acolhido num manicômio, é guindado, contra a sua vontade, à categoria de criador de vanguarda; Bispo do Rosário dizia que seus mantos não eram arte, mas coisas sagradas cuja realização tinha a ver com uma missão divina. Ninguém deu a mínima. E muitos ganharam grana com as obras do sacerdote alienado.

Quem estava com a razão?

Comentários

Nei Duclós disse…
Fiquei impressionado com os trabalhos dele numa exposição em São Paulo. Um paralelepídedo servia de carga para um caminhão de madeira de brinquedo, desses antigos, grandes. Achei que ali estava uma representação (o caminhão de madeira) carregando algo concreto, real, pesado. Uma infância tendo que lidar com a realidade. O artista fazendo o cruzamento entre o lúdico e jogo bruto. Vi então a força de Bispo do Rosário, que me desencadeou sem querer uma série de conjeturas, coisa que dificilmente faço pois raramente escrevo sobre arte. Muito boa tua reflexão neste texto. Abs.
Susanna disse…
Questão interessante essa... Cortázar tem um texto chamado "Para uma poética", que deveríamos reler para desenvolver melhor um raciocínio sobre as relações analógicas que envolvem a percepção do homem sobre o mundo e como os modos da representação dessa percepção constrói o que pode ser compreendido como arte ou não. Relaciona Cortázar o mago, a criança e o poeta e os modos como o raciocínio analógico desenvolve uma intenção de representação que passa da crença de que a palavra tem uma relação encantatória com a criação das coisas para a consciência que se tem da linguagem como construtora (e aqui nada a ver com a crença) de uma intenção de representar por meios metodicamente pensados. Mas no fundo fica a analogia que o pensamento produz e que nos instiga a questionar em que medida o resultado é matéria artistica ou não. We keep on wondering these questions...
Álvaro Andrade disse…
E agora, José? Será que ele é?
E no entanto escrevemos, quando mais dúvida, mais instigado a escrever, pois se parar o cérebro vira um balão prestes a explodir.

Creio que todos tecemos mantos sagrados com a palavra, que de fato não tem utilidade alguma fora do campo do sagrado.

Quem diz se somos escritores ou poetas, são os outros a ler o que escrevemos. o verdadeiro poeta está mergulhado em sua obra, que nunca estará completa.
Anônimo disse…
pois é meu caro, esperei seus comentários que não vieram. acho que entendo o que diz, mas sempre podemos falar no plano de sensações pessoais, como ponto de vista, não como verdade...não?
grande ab e mande bala no seu blog, sempre passo pra ver se escreveu algo novo,

leonardo aldrovandi

Postagens mais visitadas deste blog

Dá licença, meu branco!

Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humor de branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerância ad eternum , e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem dest

E mais não digo : apresentação

  De tirar o fôlego Guto Leite * Olha! Difícil dizer que o leitor acabou de ler o melhor livro do Ronald Augusto... Até porque se trata de poeta excelente, que vai com firmeza do assombro lírico de À Ipásia que o espera à organização sofisticadamente profunda de Entre uma praia e outra , e crítico atento e agudo, de coerência invejável em matéria variada, para citar Crítica parcial (isso para falar só em livros dos últimos anos). Ok, se não posso dizer que é o melhor livro do Ronald, afirmo com tranquilidade que temos uma espécie de livro de síntese de uma trajetória, de uma posição, de uma acumulação, de um espírito, que faz eco, por exemplo, a obras como Itinerário de Pasárgada , com textos canônicos de Bandeira, ou Sem trama e sem final , coletânea mais recente de Tchekhov, colhidas de sua correspondência pessoal. Com o perdão da desmedida, o livro do Ronald é mais inusitado do que esses, visto que a maior parte dos textos vem do calor da hora do debate das red

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão mínimos índices de informação verb