Muito se pode argumentar contra antologias, mas para uma recepção média que, por exemplo, passa ao largo dos “sistemas imperfeitos” das poéticas conflitantes e várias de uma época, um bom apanhado de poemas pode se converter num instrutor de valor incalculável no que respeita às questões específicas do gênero dentro de determinado contexto. Ao mesmo tempo, uma antologia honesta, representa um estrato — ou um instantâneo —, mais ou menos plausível, do ambiente cultural e literário em que se está imerso, e, por esse modo, o acervo dos textos recolhidos entre suas capas nos permite compreender também um pouco do caráter, das virtudes e das imposturas desse espaço mesmo.
Duas qualidades são imprescindíveis para uma antologia. A primeira, o bom gosto; que pressupõe um antologista experimentado e culto, capaz, além disso, de se submeter ao teste poundiano que avalia se o candidato pode ser ou não um crítico de confiança, isto é, o poeta dos Cantos nos aconselha a investigar se o crítico escreveu alguma coisa de importância, de modo a comparar sua produção com suas escolhas. O bom gosto, ou aquilo que nos faz dizer ao primeiro gole se o conteúdo de um barril é de vinho ou de vinagre, aumenta as chances de que com o passar do tempo não comecem a vir à tona poemas que deveriam ter sido omitidos pelo organizador. Tarefa de poeta-crítico, assim como a tradução-arte versus a tradução de divulgação do profissional juramentado e acadêmico, o instrumento da antologia em suas mãos sabe a um gesto de intervenção político-cultural.
A segunda virtude, decorrência, para todos os efeitos, do faro apurado do antologista, é a de que uma antologia de respeito deve possuir uma orientação clara, em outras palavras, não importando o lado para o qual se precipite, que revele, nesse movimento, o virtual organizador antes como um curador disposto a, necessariamente, desentranhar um conceito (coesão fundo-forma) do interior da diversidade selecionável e selecionada.
Mas antes de analisar, aqui, como Portuguesia contraantologia (Minas entre os povos da mesma língua...), obra organizada pelo poeta Wilmar Silva, se situa relativamente aos tópicos do “bom gosto” e de uma, por assim dizer, particular “orientação curatorial”, seria importante considerar o seguinte ponto. Wilmar Silva parece ter ignorado tanto o conceito de qualidade literária, como o de autoria na colheita dos exemplares para o seu projeto. Parece.
Nesse verdadeiro corso antropoético de mais de 400 páginas que abriga 101 poetas, Wilmar põe em questão o sentido estrito de tais categorias. A qualidade literária, a bem de verdade, não está descartada, mas apenas ficou em segundo plano, porquanto um dos traços de Portuguesia é a justaposição em nível de igualdade de toda uma rosácea de vozes que se correspondem desde o lugar transcultural de uma poesia multifária de matriz lusófona. Quanto à questão da suspeição da autoria, esta se resolve, ou é reproposta, pelo aspecto objetivo de uma opção com algo de design editorial. Isso pode ser descrito do seguinte modo: os nomes dos autores dos poemas não estão nas respectivas páginas, mas comparecem sim ao final do volume, numa listagem obediente à ordenação alfabética, e dentro de “capítulos” da seqüência vocálica, como se todo conjunto de poemas estivesse sob a divisa da oralidade: consonância e correspondência. Portanto, aquilo que, à primeira vista, poderia ser lido como efeito oriundo de um birô editorial, conseqüência do projeto gráfico, mantém relação isomórfica com a orientação da antologia. Então, numa primeira sondagem, o importante seria a fruição de cada poema em si mesmo; o corpo a corpo imediato com experiências textuais irredutíveis a qualquer molde autoral, como se estivéssemos às voltas com a máxima mallarmeana segundo a qual quem fala no poema não é o poeta, porém a própria linguagem. Linguagem vertida em corpos que se desdobram em discursos imersos no rumor de suas cidades, no barro ribeirinho, na poeira da periferia, no vento que vira as páginas dos seus livros, sujos de salsugem do mar oceano.
O vertiginoso senso curatorial de Wilmar Silva entende que o conhecimento prévio da autoria pode determinar — ou distorcer as coisas por meio de — uma chancela de concordância ou de repúdio dentro das tensões valorativas impostas pelo sistema literário. De outra parte, na mídia que acompanha o livro, um filme-ensaio onde os 101 poetas lêem ou dizem seus textos, créditos com nome e sobrenome e o país de origem denunciam cada um deles. Deste modo, não só o autor se revela, mas ao proceder à leitura-aula do próprio texto, revelando-nos suas signagens indecorosas, dá a ver uma autoridade exaustiva sobre o filho-poema.
Portuguesia contraantologia é uma obra bilíngüe. A fala e a palavra escrita nos caracterizam como bilíngües. Por isso há o livro com as “partituras” simbólicas (em sentido peirciano) dos poemas, e um DVD com os poetas-executantes materializando, dando corpo, rastros indiciais e fluídos à poesia, a mais abstrata das artes, segundo Fernando Pessoa. No DVD-ensaio, dedicado expressamente aos ágrafos, comparecem tanto a beleza quanto a traição da tradição oral que tanto prezamos e proseamos como marca identitária. Quando me refiro à “traição”, quero dizer que muitos poemas funcionam apenas quando escapam ao limite de mancha gráfica impressa no papel, vale dizer, quando ganham o espaço sonoro sem margens, sofrendo, inclusive, toda sorte de interferências externas. No DVD vemos e ouvimos muitos poetas lendo suas peças à viva voz enquanto são assediados pelos sons do lugar que serve de cenário à performance: o mar batendo ao fundo, a chuva percutindo o guarda-chuva, o murmúrio do chafariz, pássaros grasnando na zona portuária, carros frenéticos num cruzamento urbano de Guiné-Bissau, etc. Tudo isso entra na semiótica da dimensão oral do texto, espécie de micro ópera precária cujo libretto se constitui numa espécie de happening transverbal. Lidos em silêncio, “à moda antiga”, numa atenção mais verbivisual, boa parcela dos poemas resta numa região de suspeição em relação ao seu valor — é difícil dizer isso, inclusive porque cada poema, teoricamente, inaugura e exaure uma chance de linguagem. Entretanto, em muitos casos entramos nos domínios da letra de música, que só tem sentido quando cantada. Para James Joyce a letra da canção significava “palavra voando”. Amostra encontrada em Portuguesia: “O Natal a Coca-Cola comprou/ A páscoa a Nestlé dominou/ O Carnaval a Globo registrou!// Tudo está à venda!/ (Estes versos estão à venda)”, pág. 299 I.
Por outro lado, a imagem da “rosácea”, usada na tentativa de representar a pulsão centrífuga de Portuguesia, atende à rubrica musical que indica a “abertura circular no tampo dos instrumentos de cordas” responsável pelo efeito de ressonância. Tanto no livro quanto no DVD, Wilmar Silva se aplica na fatura de um percurso transversal pelas poéticas de expressão portuguesa com o intuito de descobrir-lhe uma etnopoesia latu sensu constitutiva de seu estar no mundo. Na versão audiovisual do projeto ambidestro, modulações divergentes se projetam sobre a fratria lingüística. Por essa razão os poetas de Portugal são responsáveis pelas consonâncias; os brasileiros, pelas assonâncias; e os africanos expressam-se por meio de uma música que inclui valores consoantes, toantes e tonais (compósito lingüístico banto-português; no Brasil, o iorubá serviu de contrapeso).
Portuguesia contraantologia é babélica, no entanto, apenas e fundamentalmente no sentido em que cada poeta que a integra manifesta uma di-versão, um recorte divergente e irredutível de linguagem (variação parental) que se projeta sobre discurso da poesia enquanto convenção ou paradigma de uma função estética relativa à linguagem. Na figura antropoética que anuncia, esses textos de mesma língua, sob a aparente identidade da expressão portuguesa, exercitam uma fricção às vezes a beira da incomunicabilidade. O ecletismo desmesurado de Wilmar Silva descobre um rasgo de delicado convívio entre, por exemplo, o português António Ramos Rosa (poesia algo descarnada, atravessada por “desertos brancos”) e Sebastião Nunes (versos fesceninos, onde “cus recuam” diante de priápicos pornografemas); o poeta experimental E. M. de Melo e Castro (afasia de poesia sem-versista) se limita com a canção do sergipano Jorge Dissonância (acento tropicalista, letras com semas nagôs); enfim, em certos momentos a obra me faz evocar a imagem do espelho que se rompe em fragmentos que jamais se unirão.
Mas, pelo ângulo dos cruzamentos e da instabilidade provocante dos sincretismos — formas com que respondemos à difícil tradução das subjetividades envolvidas em nosso comércio de afetos —, se poderia abordar a orientação da contraantologia de Wilmar. O poeta-organizador aceita o risco da narrativa panorâmica e multifária que nos apresenta; epos poético-documental que se contenta com certo desconcerto vivo, vacilante e contraditório, tal como os retratos em 24 quadros por segundo dos poetas em leitura informal de seus poemas. No variegado conjunto dos depoentes, ouvimos o eco da tradição, Portuguesia: histórias que não separam o canto do conto. Wilmar Silva, finalmente, nos faz recordar que a poesia, por meio do ritmo, pode comunicar-se antes que seja compreendida.
Comentários
Tua análise instiga,perfura, cutuca, aponta as dissonâncias da Linguagem, parabéns!!!
E venho pensando muito no valor da Antologia, como efeito Cultural de uma memória poética, tanto no Social, por possibilitar a concretude desta memória, quanto na sua economia por compartilhar e viabilizar um tempo possível para que elas existam... pois, a mim esse caráter de concretude parece ser o significante forte de uma Antologia...
Um beijo amigo e companheiro e agora tenho mais um escrito para seguir a reflexão, gracias!!!!
Carmen Silvia Presotto
www.vidraguas.com.br