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joelho ralado no chão da linguagem



Uma distinção arbitrária, ou forçada como são todas as distinções, pode-se fazer entre os escritores. De um lado teríamos escritores mais evasivos, ou seja, propensos a criar objetos verbais através dos quais, nós leitores, empreenderíamos uma fuga vertiginosa/virtuosa do real, penetrando, assim, em um mundo alternativo proposto por essa classe de escritores.

De outro lado, teríamos escritores cujos textos parecem nos remeter a uma situação de maior contiguidade com o real, isto é, a todo momento, quer pelo uso de uma linguagem falada nas ruas, quer pela velocidade fragmentária das cenas, somos lembrados de que estamos rente à realidade abrasiva do nosso tempo. Esse tipo de escritor, à diferença, por exemplo, do romancista James Joyce, não quer despertar do pesadelo do lugar nem da história. Pelo contrário, ele pretende tocar na ferida aberta, chegar no “coração das trevas” desse real possível.

No entanto, essas características são relativas e relacionais. Tais escritores, assim apresentados como se estivessem em cantos opostos de um ringue na verdade não existem. As duas formas, os dois caminhos estão contidos no espírito de qualquer escritor. O que acontece é que cada escritor, devido a questões contingenciais de repertório e desejo, pode propender mais para um lado ou para o outro. Como modo de expressão, o escritor pode optar entre a evasão e o verismo.

Portanto, Cássio Lamas Pires, nesse momento em que dá por iniciado oficialmente o seu percurso textual com o livro Chão de Brita (Vidráguas, 2010), se decide temporariamente por uma vertente onde a vida de todos os instantes e de todas as mídias é o foco do seu apetite de linguagem. Em alusão ao personagem do conto que fecha o livro, Cássio, na tentativa de investigar os conflitos do real, se contenta em ralar seu joelho de prosador no chão de brita constitutivo desse mesmo real que, paradoxalmente, só existe entre as capas do seu livro de estreia.

Entre as capas e entre as abas do livro, pois esse objeto do mercado livreiro-editorial supõe uma interpolação na correnteza da realidade, encontramos não a própria (pois nada cabe no livro senão a linguagem), mas alusões poderosas à realidade. Capas e abas (incluindo o texto da orelha) se constituem em parênteses dentro dos quais colocamos o mundo num estado de suspensão, isto é, em nossa condição de leitores, não vivemos mais o mundo, apenas o pensamos ou o fruímos. Em Chão de Brita temos recortes do real. Escotilhas de linguagem por onde vemos passar ante nossos olhos trechos da vida como ela se nos afigura nesse instante do nosso tempo.

Chão de Brita reúne e não reúne 25 pequenos contos. Reúne, por um lado, porque o sumário nos diz que a obra enfeixa 25 textos, mas, por outro lado, não reúne porque o processo de leitura aos poucos nos revela que há um conto-matriz que desdobra o seu enredo ao longo do conjunto das narrativas. Esse conto-matriz começa na página 23 com o texto intitulado “Leopard”.

À medida que avançamos, fragmentos desse conto em trânsito se bifurcam a intervalos, surgindo aqui e ali na forma de contraponto aos demais contos de Chão de brita. Graças a esse expediente, Cássio Lamas Pires, consegue sustentar o interesse do leitor mantendo dentro de uma constante temática (isto é, a violência urbana), desvios narrativos abertos ao espaço da evasão e ao desejo do demônio da analogia. Chão de brita fala, portanto, a linguagem do mundo e, ao mesmo tempo, dá ouvidos ao mundo da linguagem.

Comentários

Unknown disse…
Grande Cássio, Gremista da gema! Escritor grande....!!!
Chá de Brita fala a muitos mundos e ao nosso interior, universalizando um tempo em que a linguagem nos tonifica!

Um beijo amigo Ronald e parabéns teu comentário, evidencia a leitura por trás das palavras, atenta!
Olá, Ronald,

Passei aqui para divulgar meu blog de poesias. Lerei com mais calma suas postagem futuramente.

Aqui o link: http://umpoematoscopordia.blogspot.com/

Obrigado.

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