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a cidade à beira do arqvivo






A poesia ocupa um lugar anterior ao surgimento da cidade. Para esta, a poesia seria a representação do atraso, a música do mundo agrário e ágrafo, povoado de bestas mitológicas e divindades bárbaras. A poesia, espécie de pensamento teocrático, finge o deus a quem tão devotamente dessacraliza. O cidadão comparece nessa cena como o hipócrita leitor baudelairiano, mentalidade pública, o caroço mesmo da democracia. Mas “em algum lugar da utopia, ou do ativismo político, operou-se o divórcio entre dirigente e dirigido, entre governo e povo” (Mirko Lauer). A cidade deixa de ser a concreção da possível arte da política e é rebaixada à condição de ruína glamourizada, monturo, despojo dos conflitos ideológicos.

Um poema de verdade, poema bom, dizem, parece falar de tudo e de nada ao mesmo tempo, seja quando fala da luz de uma nuvem, do baque de uma onda, ou do inexistente. A memória flui e reflui como uma invenção da poesia; e o imaginário se configura num elemento fundamental perante a economia do esquecimento. Mas a memória acaba por ser incorporada à política como história. As ideologias, no fundo, são amnésicas, por isso amparam-se na noção de história como diacronia e na reverência museológica, canônica. Museus são braços políticos mais do que instituições públicas, ou privadas, interessadas na valorização ou na problematização do saber. O aporte da tradição ao presente se dá como acervo mítico.

Passado transformado em arquivo, taxidermia catalogável, resumo de objetos e documentos tão raros quanto remotos. Visitamos estes despojos movidos por uma espécie de culto narcísico, votados à construção de uma identidade e de um verismo nacionais. O projeto museu é o conhecimento ordenado por pessoas de “renomada erudição” e concebido de tal maneira que as próximas gerações e os interessados de agora não “percam tempo” no uso de sua liberdade de pensamento questionando as razões que fizeram as escolhas desses polígrafos recaírem sobre estas obras e não aquelas, estes artistas em detrimento de outros.

Comentários

Ronald que bom ter este texto-depoimento, posso sequestrar lá para o Vidráguas?, assim pensamos a poesia e também a memória de uma cidade poética.

Beijos e bom final de semana.

Carmen.
Aldo Votto disse…
Beleza conterrâneo!
Apenas registro a bela luz das fotos [celuláricas?] impressionistas.
Quanto ao texto - vide capítulo anterior - poderia conceder ao leitor alguns aforismas, como este, com a devida vênia pela pequena edição, que me parece central:

Os museus são braços políticos, mais do que instituições cujo o objetivo é a valorização ou a problematização do saber.

Abraço,
Aldo
Ronald Augusto disse…
"Esse pré arquivo, o arqui-vivo poema, seria a pré-cidadania, a ancestralidade presente fora dos limites do documento, pulsando para reiventar vida, em oposição ao que tudo transforma em sarjeta? Apenas uma das múltiplas perguntas que este texto magnífico nos sugere."

(comentário do nei duclós que por um lance de dedos imperito de minha parte quase apago para sempre: http://outubro.blogspot.com/)
Nei Duclós disse…
Esse pré arquivo, o arqui-vivo poema, seria a pré-cidadania, a ancestralidade presente fora dos limites do documento, pulsando para reiventar vida, em oposição ao que tudo transforma em sarjeta? Apenas uma das múltiplas perguntas que este texto magnífico nos sugere.
Adriana Bandeira disse…
A palavra é o resto mítico que refunda uma cidade...todos os dias.O lugar não é dos utensílios do tempo mas, sim, o de cada fala que dá existência a um sujeito.
pensei estas coisas com este texto belíssimo...
beijo grande
adriana bandeira
http://indecentespalavrs.blogspot.com/

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