Pular para o conteúdo principal

a compaixão mais forte

o poeta edson cruz

O que é e já foi, um dia, o homem – ou o ego scriptor de – Edson Cruz, está muito bem presentificado via linguagem (sistema que se exaure e se renova a cada gesto poeticamente crucial) nesse conjunto de poemas intitulado Sambaqui. Se o poeta, parafraseando um trecho do poema “Caravana solitária”, por meio do desatino da linguagem, consegue “acariciar” o seu próprio destino, isso tem a ver com as limitações inerentes ao objeto verbal de que se serve, pois “as palavras não sabem/ nem saberão...” dar conta dos sentidos (e não do sentimento) do mundo. A poesia de Edson Cruz faz menção lateral à humildade (enquanto estilo poético) de Manuel Bandeira, uma compaixão mais forte, desonerada de qualquer martírio ou inação contemplativa. O poeta está comprometido e em ação, mas sempre com e via linguagem: “tantas intenções projetadas/ e continuamos a tatear/ redundâncias”.

Edson faz crítica através da linguagem, isto é, através dos jubilosos equívocos semânticos que nutrem a tarefa poética. Combinação de ecos, camadas discursivas provenientes de controversos tempos e espaços: acervo harmônico, em sentido marioandradino, isto é, por oposição ao melodioso, ao dócil. A palavra designa essa alma sem calma (topos pessoano) que foge ao “desfile de horrores”, à “ação que se conclui”, ao logro do xeque-mate. Em cada poema do conjunto Sambaqui deparamos o soft de base e o hard alusivo, entrelaçados com capricho. Os poemas reconhecem similaridades entre John Cage e o samba, entre as redundâncias e a vertigem da cegueira, entre a dádiva imerecida e o sal que corrói a pele da alma.

Edson Cruz é um poeta que mobiliza as palavras no poema de modo a deslustrar o entendimento pela intuição e a sugerir o entulho no antolho do sabido. Sua poesia representa a mudez ruidosa do mundo por meio tanto da dualidade do ser, como da ambiguidade da signagem estética. O silêncio, constitutivo da composição do poema, uiva vivo em Sambaqui, para Edson Cruz trata-se de um “cão sem dono/ entregue/ à própria sorte”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a...

O prazer da leitura tripla

  Lendo Ronald Augusto Poesia de poeta “experimental” convida ao prazer da leitura tripla por Paulo Damin, escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul. “Polêmico”, disse uma colega professora, quando o Ronald passou por Caxias, tempos atrás. Deve ser porque ele é um filósofo. Ou porque comentou a falta que a crítica faz pra literatura. Ou então porque o Ronald escreve versos “experimentais”, ou mesmo experimentais sem aspas. As ideias dele sobre crítica e literatura são fáceis de encontrar. Tem, por exemplo, uma charla literária que fizemos com ele, neste link . O que vim fazer é falar sobre ler os poemas do Ronald Augusto. Sabe aquela história de que é mais importante reler do que ler? Esse é o jogo na obra poética dele. Minha teoria é que todo poema do Ronald deve ser lido pelo menos três vezes. Na primeira, a gente fica com uma noção. Que nem entrever alguém de longe na praia, ou na cerração. A gente pensa: é bom isso, entendi. Vou ler de novo pra entender melhor umas coisa...

Cruz e Sousa: make it new

Ronald Augusto [*]   Falsos Problemas “Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! Porque és a escalpelante ironia da formosura, a Sombra da aurora da carne, o luto da matéria doirada ao Sol...” Eis aí, talvez, o indispensável Cruz e Sousa expondo - à sua maneira ou a quem tiver olhos para enxergar - o âmago daquilo que alguns estudiosos de sua obra consideram a “nota brasileira” do seu simbolismo, a saber, a condição de negro. Este recorte metonímico do poema em prosa “Psicologia do Feio”, que integra o livro Missal (1893), dá uma pequena amostra de quão abrangente é o estrato semântico a movimentar os dilemas e estilemas crítico-criativos de Cruz e Sousa. O Feio representa, a um só tempo, vetor ético e estético. O poeta opera com uma variante do motivo do artista maldito que vai se desdobrar no demiurgo algo monstruoso - porque dotado de “energias superiores e poderes excepcionais” que, no desmedido de sua experiência (húbris), transformam-se em verdadeiras ofensas co...