A decepção anunciada por todas as rádios ao longo do dia, finalmente começava a taxidermizar os passantes. Árvores tresloucadas e faróis acesos. Não me perguntem sobre o velho. Ele despertou há pouco; a cama está quase intacta, pois ele não se move durante o sono. Boceja rouquenho. As coisas lanhadas até os ossos brancos; foi desbastado, sem dó, o sopitado rancor diário das esquinas e gentes; ficar sob essa lição deve ter sido um inferno. Nenhuma lamúria, palma e mais nada. Cada movimento esboçado sob o cobertor decrépito faz o velho se arrepender de ter acordado. Se pudesse ao menos se encolher. De nada serve a pergunta, mas vá lá: como é que essa dona foi se abandonar assim, esturricada dessa maneira? Não sei, parece que passa o tempo todo cosida aos livros! O quarto, abafado e enublado com vapores amarelos, sustenta ainda mais o silêncio do velho. Tártaro na dentadura tartamuda. Segundo me disse a linguaruda que vive para lá, depois da região portuária, foram esses livros de religião lidos e relidos com desespero que chuparam toda a vida que ela esbanjava, mansa. Numa ruína de símbolos, é assim que a pobre vai acabar. Quando o meio-dia deixou tudo assim de um jeito pasmo e árido, minha argumentação foi ouvida com atenção, figurou como um alívio para o pessoal daquele turno.
TRANSNEGRESSÃO 1 No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão ...
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